Em 1982 Ridley Scott filmou a obra que marcou todos os jovens da minha geração: “Blade Runner”. O livro que inspirou o produto cinematográfico foi escrito por Philip K. Dick em 1968, e tinha um título premonitório do futuro que agora começamos a antever: “Do Androids Dream of Electric Sheep?”
“Blade Runner” é considerado uma obra-prima do cinema neo-noir e tem influenciado séries de televisão, videojogos e sequelas do filme original.
Os blade runners eram polícias que retiravam da circulação as réplicas disfuncionais, humanos sintéticos produto da bioengenharia que desempenhavam os trabalhos mais pesados num mundo sem valores. O filme está ambientado em Los Angeles, cidade distópica controlada em todos os seus aspetos por uma grande empresa, a Tyrell Corporation.
A ação decorre em 2019, o ano em curso. É inquietante ter visto chegar o ano de “Blade Runner”. Apesar do ambiente positivo que os americanos viviam em 1968, um ano antes da chegada do homem à lua e nos momentos culminantes do American Way of Life, o autor da obra original projetava a visão de um mundo desgastado e desumano que haveria de chegar em cinquenta anos.
Na altura em que se filmou a longa-metragem, estávamos expectantes com a chegada de 1984, o ano que dava título à obra de George Orwell, publicada em 1949, pouco depois do final da segunda guerra mundial. O sentimento era de que o futuro estava já a chegar.
O aspeto mais apaixonante de “Blade Runner” são as múltiplas dimensões em que o filme se aproxima da realidade atual: a robotização da sociedade e o convívio entre pessoas e máquinas; as mentiras, difundidas pelos líderes da comunidade, que condicionam o comportamento das pessoas e que hoje chamamos fake news; a imigração, de robôs no filme e de pessoas de outras culturas e raças na atualidade; o domínio absoluto das grandes empresas não só no âmbito económico mas em todos os aspetos da vida das pessoas; e a insustentabilidade das grandes metrópoles e o seu impacto na natureza. A análise de cada um destes aspetos mereceria uma reflexão específica.
Não deixa de surpreender e de inquietar que todas estas questões sejam tão relevantes no Portugal de 2019. A capacidade antecipatória de Philip K. Dick é produto de uma reflexão sobre a forma como as novas tecnologias, poderosas e omnipresentes, condicionam o comportamento das pessoas, cujas grandezas e misérias são imutáveis e intemporais.
Embora o contexto tecnológico do filme, dominado por carros voadores com capacidades muito superiores às dos nossos drones, seja bastante distante da realidade, a essência da mensagem sobre as implicações éticas da criação de formas de vida sintéticas resulta totalmente atual.
Lembro-me do dilema que senti na altura em que vi o filme pela primeira vez, perante a dificuldade de identificar-me com as personagens do filme, num cenário de dissolução do autêntico num magma de imitações quase perfeitas. Quem somos nós, os perseguidores ou os perseguidos? A réplica é tão perfeita que também procura a felicidade, enfrentando uma desumanização hoje encarnada pelos Trumps, Putins e Bolsonaros, bêbedos de uma nostalgia sintética. Se calhar, a maioria da humanidade de hoje são réplicas fabricadas pela Amazon e ainda não o sabemos.