O debate económico e sobretudo político é frequentemente inquinado devido a interesses poderosos. Para alguém que viveu nas últimas décadas habitou-se a ouvir e a aceitar a ideia de que o Estado é ineficiente e que as empresas públicas são mal geridas. Que as privatizações e a busca do lucro privado são o caminho a seguir.
Esta é uma das ideias chave da doutrina neoliberal. Ha-Joon Chang no livro “As Nações Hipócritas – os segredos incómodos dos países ricos e os mitos que ameaçam a prosperidade global” – tradução para português do livro “Bad Samaritans” – aborda esta questão. Segundo ele, a narrativa neoliberal é composta por três argumentos:
1) os gestores públicos não se preocupam o suficiente com as empresas públicas que gerem, porque não encaram as empresas como suas;
2) os cidadãos não têm incentivo para controlar adequadamente os gestores públicos e vigiar as empresas públicas, uma vez que os benefícios de um controlo adicional por parte de alguns cidadãos irá ser partilhado por todos, enquanto que apenas os cidadãos que realizam o controlo pagam os custos (ex. o tempo e a energia gastos a analisar as contas da empresa ou a alertar as agências relevantes para os problemas);
3) como são parte do Estado, as empresas públicas obtêm financiamento estatal adicional quando têm prejuízos. Como o Estado vai sempre socorrê-las há um incentivo adicional para serem mal geridas.
O que este ataque neoliberal não revela é que estas críticas e argumentos se aplicam em grande medida à gestão das grandes empresas privadas da actualidade. Nas grandes empresas privadas os gestores são contratados e há muitos accionistas. Os gestores contratados também têm tendência para não se esforçarem acima de um certo nível (por isso são-lhe atribuídos prémios de desempenho) e os accionistas individuais também não têm incentivo suficiente para controlar os gestores contratados, deixando para outros accionistas mais importantes essa tarefa.
Se a empresa privada for suficientemente importante (como são as grandes empresas) também pode esperar receber subsídios ou até resgates com fundos públicos, conforme pudemos comprovar na resposta à crise financeira global de 2007/2008. Portanto, os argumentos teóricos não são conclusivos.
Mas neste debate, mais importante do que os argumentos teóricos são os exemplos concretos e históricos que demonstram que as empresas públicas foram fundamentais para o desenvolvimento económico de diferentes países. Não precisamos de sair da Europa para apresentar vários exemplos de empresas que ganharam relevância mundial sendo públicas: a Renault e Volkswagen (automóveis), a Alcatel (equipamento de telecomunicações), a St. Gobain (materiais de construção), a Unisor (Aço), a Thomson (electrónica), a Thales (defesa), a Elf (petróleo e gás), etc.
Além disso, Ha-Joon Chang salienta que é relativamente consensual na teoria económica que há circunstâncias em que as empresas públicas são melhores ou mais adequadas que as empresas privadas:
1) Quando os investidores do sector privado (que procuram sobretudo lucros seguros e de curto prazo) se recusam a financiar um empreendimento viável no longo prazo por considerarem que é demasiado arriscado ou avultado;
2) Quando existe um “monopólio natural”, uma situação em que as condições tecnológicas ditam que a existência de um único fornecedor é a forma mais eficiente de servir o mercado (ex. electricidade, água, gás, vias férreas);
3) Quando há necessidade de promover a igualdade entre cidadãos e a coesão social e territorial. Uma empresa interessada apenas nos lucros pode aumentar de forma incomportável os preços para áreas remotas e regiões desfavorecidas ou acabar mesmo com o serviço, perdendo os cidadãos acesso a serviços essenciais, como a água, correio (acompanhem os resultados da privatização dos CTT em Portugal) ou os transportes.
A boa ou má gestão, o bom ou mau desempenho pode existir tanto no público como no privado. Os mecanismos de correcção dos maus exemplos existem ou podem existir tanto no privado como no público. Os critérios de avaliação dos diferentes modelos devem ser abrangentes e não redutores. E quando introduzimos critérios sociais, ambientais e económicos mais abrangentes para além dos financeiros, quando pensamos a longo prazo e não só a curto prazo, compreendemos a importância do sector público na economia, sobretudo num país não dominante, periférico, como Portugal.
Como salienta Ha-Joon Chang, os países ricos tornaram-se dominantes com forte intervenção e regulação estatal antes de dizerem aos outros “façam o que vos digo, não o que eu fiz”.
Sem o controlo público de sectores estratégicos o país fica mais dependente de poderes externos, politicamente, democraticamente e economicamente mais fraco, incapaz de influenciar e orientar a economia. Devemos recordar o artigo 80.º alínea a) da Constituição da República Portuguesa que estabelece como princípio fundamental da organização económico-social a “subordinação do poder económico ao poder político democrático”.
A propriedade pública deve ser encarada como um meio para mais democracia e não como um fim em si mesmo. Nesse sentido é importante recordar também o Artigo 2.º: “A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efetivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa.”
A democratização de uma economia complexa pode ser realizada por várias vias: desde cooperativas, a propriedade estatal de monopólios naturais, de sectores de investimento a longo prazo e de instituições financeiras, até propriedades administradas regional ou localmente.
Por isso, as reformas estruturais que necessitamos passam pela revalorização das funções sociais e económicas do Estado, pelo retorno à esfera pública de empresas estratégicas e pela implementação de mecanismos legais, de gestão e políticos que melhorem e democratizem o Estado e as empresas públicas. Em suma, cumprir a Constituição da República Portuguesa.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.