1. Se um qualquer cidadão resolvesse emprestar dinheiro a outro para este lhe ficar com a própria casa, recebendo no momento da ‘venda’ da mesma o dinheiro entretanto avançado, o que pensaríamos dessa pessoa? E se, no seguimento de uma história quase inverosímil, ficássemos a saber que, para além do mais, provavelmente a casa até tinha sido entregue a um preço abaixo do valor de mercado? Soubéssemos nós de um amigo capaz de coisa semelhante, perfeitamente legal, e creio que o acompanharíamos de imediato ao médico de saúde mental mais próximo; fosse ele apenas um conhecido e ninguém nos poderia levar a mal que perguntássemos se, por mero acaso, não teria outra casita para ‘vender’. Pois o Novo Banco (NB) tinha. Mais concretamente dispunha, numa carteira designada por ‘Viriato’, 5.552 imóveis e 8.719 frações! E, num envelope ao lado, tinha 364 milhões para emprestar por essas mesmas casas que, diz-se, ainda por cima valeriam quase o dobro.
2. Quero começar por dizer que o NB cometeu um erro terrível. Tendo 13.271 ‘fogos’ para espalhar pelo mercado poderia ter feito uma ação de marketing de que não há memória no mercado mundial: chamar 13.271 clientes, talvez pessoas em princípio de vida, e entregar-lhes as casas. Essas pessoas ficariam com duas opções: vender imediatamente a terceiros, devolvendo o dinheiro avançado com a casa e guardando as estimáveis mais-valias – o que já por si seria aliciante; ou optarem por pagar a casa, entregue a preço menor do que valeria no mercado, a prestações – o que não seria menos apreciável. Insisto: o NB tornar-se-ia um caso de estudo a nível mundial e faria jus ao primeiro nome que conheceu depois do terramoto do BES, o “banco bom”.
3. Infelizmente, o NB escolheu a via menos estimável socialmente: um único cliente. E com tanta pontaria andou que ao dia de hoje não se sabe o nome do, ou dos, beneficiários da empresa felizarda. No jogo da lotaria dos números é um caso habitual: o jogador, para não ser incomodado em caso de bafejo da sorte, faz um ‘xis’ num quadradinho. No mundo das empresas, esse ‘xis’ tem por equivalente formar uma empresa algures num offshore, habitualmente nas Caraíbas. Trata-se disso sem sair de Lisboa ou do Porto, pelo menos.
4. Chegados aqui temos de entender que tudo o que se tem passado no NB, tendo matéria para auditores e, quem sabe, investigadores, é uma consequência do contrato estabelecido com o fundo Lone Star pelo primeiro governo de António Costa que vendeu, perdão, entregou sem qualquer custo, 75% do Novo Banco (o Fundo de Resolução ficou com os outros 25%). Nesse contrato, de 2017, o Governo aceitou um mecanismo de capital contingente que previa que durante oito anos (através do Fundo de Resolução) se compensassem eventuais perdas num conjunto de ativos do antigo BES até um máximo de 3.890 milhões de euros. Como se sabe, acompanhados de mais ou menos ruído, já lá estão 2.978 milhões de euros.
5. E como se cavam perdas? Pessoalmente, não sei. Mas oiço pessoas capazes de estabelecer relações entre processos como o da ‘venda’ destas casas e a criação de necessidades financeiras e contabilísticas que depois acabam no Orçamento do Estado, via Fundo de Resolução. Sem muito esforço, até consigo ouvir quem acredite que, precisamente num caso assim, o próprio Lone Star poderá estar do outro lado, ganhando em ambos ao mesmo tempo. Horrível e incómoda suspeita (que espero não se confirme)! Num caso desses haveria inequivocamente uma quebra dos termos do contrato. E, se isso acontecesse, ninguém nos poderia garantir que não tivesse sido também prática corrente no passado recente.
6. Este caso do NB tem um alto potencial destrutivo em termos políticos – e por isso mesmo António Costa coincide com toda a oposição e até o Presidente, Marcelo Rebelo de Sousa, no desejo de uma investigação do Ministério Público. O primeiro-ministro escreveu mesmo uma carta nesse sentido à PGR, Lucília Gago, pedindo que fossem desenvolvidos procedimentos cautelares adequados à proteção dos interesses financeiros do Estado. Concordo: é urgente suspender esta venda de ativos do NB ao desbarato. Infelizmente, a banca continua a justificar rédea curta. O pior de tudo é constar que o país parece eternamente a saque. E, neste caso, o processo ajudou.