O programa político que venceu as eleições no Brasil tem muito menos que ver com o combate à corrupção do que com a desactivação dos poderes públicos. Moro aceitar ser ministro da Justiça de Bolsonaro desrespeita a imparcialidade da justiça e mostra com descaro como esta tomou partido. Só falta demonstrar desde quando. Fica claro que o combate à corrupção no PT foi politicamente motivado, o que reforça a tese de golpe. Mas também claro fica que o combate à corrupção será, doravante, machado enterrado bem longe da vista.

A instrumentalização da justiça é gritante. Moro a ministro parece o prémio da justiça, mas nada mais errado: é sim a derrota institucional da justiça brasileira, deixada tão exposta como é deixado campo aberto para a invisibilização da corrupção. Para sermos absolutamente claros: é a própria Justiça brasileira, refém de um magistrado comprometido, que vai garantir o regresso da corrupção à invisibilidade de outros tempos, em que o estado de direito chegava a poucas partes do Brasil, seja da sociedade, tão desigual que chega a incapacitar o reconhecimento do outro como civilmente igual, seja do território, tão continental, na verdade, vastidão onde  se quer repor a lei que diz “Aqui a lei sou eu”.

Pôr o estado de direito no seu lugar, acabar com o atrevimento de levar os seus valores a toda a sociedade, favelas incluídas, a todo o território, interior todo incluído, limpar o Brasil da acção do estado de direito, torná-lo letra morta, é  este o programa do bom Jair Bolsonaro, Messias por nome do meio, que faz conferências de imprensa diante da garagem de sua casa, com vista para as lonas que cobrem bicicletas de garotos. Tanta simplicidade, como o direito às armas e a fazer-se justiça pelas próprias mãos… Não importa se o cidadão comum levará um tiro antes de pensar em disparar, desde que os senhores que vão tomar conta do território, da comunidade, da sociedade possam ocupar o lugar do estado de direito e dos poderes públicos.

Ficando lá na frente da sua garagem, o bom do capitão aposentado faz o serviço de estado à causa de acabar com a intromissão do estado, à revanche contra uma democracia que chegou à idade de Cristo. E aqueles que, enquanto Presidente, elege como principais adversários não são corruptos de espécie alguma, mas precisamente duas espécies de gente pouco dada à corrupção, sequer à ocasião para tanto: os activistas e os professores. Falemos dos dois casos, para o bolsonarismo bandidos do piorio, resta saber porquê.

Bolsonaro declarou no final do primeiro turno que ia pôr um ponto final ao activismo no Brasil. E a razão não é serem xiitas, fundamentalistas, inimigos da liberdade, nada disso que, sem esforço de inteligência, nem prejuízo da honestidade intelectual, se encontra com abundância nos seus correligionários e na sua mensagem, a marginar pelo lado de dentro o discurso do ódio.

A razão subentendida é mesmo o activismo, com coragem e apesar de muitos motivos de medo, entrar dentro da terra que se quer sem estado de direito para exigir respeito pelos direitos e pela lei. Activistas na favela, na Amazónia, que atrapalham a invisibilização da corrupção e de poderes fácticos, que questionam, chamam jornalistas e  viralizam, são estes os mais imediatos inimigos a abater pelo programa político em curso.

Agora eleito, feita a declaração sobre o activismo, Bolsonaro nem precisa de sair da sua garagem. Os senhores dos interesses, com a justiça manietada por Moro e com o estado de direito encolhido, tratarão esses xiitas à lei da bala. Vá ficando, lave as viaturas, ajeite a lona, até dá para fazer conferência de imprensa daí e comunicar que a embaixada em Israel irá para Jerusalém, que xiita é inimigo comum. O Planalto fica para amanhã ou depois, ou talvez nunca. Para quê realmente? Ainda vai parecer petista se perder esta simplicidade de não fazer nada, sinónimo de Estado que fica quieto e deixa cada um tratar de sua vida. A enviar alguém, o melhor mesmo é ser o Frota.

E o que move em fúria a perseguição aos professores? Bem, se os activistas são a guarda avançada da cultura de estado de direito, os professores são a retaguarda que transmite essa cultura. Ao respeito pela dignidade do outro, pela sua diferença e de que esta não pode nunca servir para desrespeitar a igualdade, Bolsonaro e a sua horda chamam ideologia.

Sim, é a ideologia dos princípios constitucionais de qualquer estado de direito e dos direitos humanos, esta que um governador alarve acabadinho de ser eleito no Rio de Janeiro sem nunca ter posto um pé na Rocinha (Wilson Witzel) e um general na reserva apontado para ministro da defesa de Bolsonaro (Augusto Heleno) restringiram com grotesco mau gosto ao que chamam humanos “direitos”. Se forem católicos, venha a inquisição mandá-los para o inferno. Mas, antes disso, e imperativamente, devia ser o tribunal constitucional a ordenar a destituição a quem falha nos valores civis que a escola lhe devia ter transmitido, porque fundacionais para o Brasil e porque consagrados na carta universal de direitos humanos da ONU, organização de paz mundial que, há alguns meses, Bolsonaro declarou abandonar caso fosse eleito presidente.

De volta ao movimento escola sem partido, de acordo com o fundador e coordenador, Miguel Nagib, liberdade de ensinar e liberdade de expressão não coincidem. De acordo, sem dúvida. Ensinar não pode ser justificação para fazer campanha eleitoral, nem perturbar o direito fundamental a professar uma fé. Mas, o que tem ele em mente com a ideia de abuso da liberdade de ensinar? Perplexo, ouço-o numa entrevista a contar como tudo começou: um professor da sua filha teve o atrevimento de, falando de Che Guevara em aula, que é para todos os efeitos um protagonista da história contemporânea da América Latina, o comparar a São Francisco de Assis.

Fica-se de olhar vazio diante da situação exposta, sem perceber onde está ao certo o problema que tanto indigna: está em mencionar o primeiro, o segundo, ou em  compará-los? Achava que se riscava da história o nome de um seu protagonista? Achava que se sacralizava um santo riscando a relevância da sua biografia histórica? Seria ridículo, digno de uma peça da Porta dos Fundos, mas é sobretudo muito perigoso.

A indignação depressa dá lugar à ameaça, pelo  raciocínio maniqueísta, a falácia da falsa dicotomia, que é o expediente retórico que os totalitarismos sempre adoptam. Com pompa, Nagib declara: “Eu entendo o seguinte: Quem é contra a escola sem partido está, na verdade, a favor da doutrinação.” Ouvido isto duas vezes, só ocorrem ao juízo variações estalinistas do tema, como esta: quem é favor da doutrinação está, na verdade, contra a escola com partido. A ideologia deste senhor até se presume a oposta, mas o dispositivo proposto, ou seja, a ideologia que se deseja realmente praticada, é a mesma. Ela está muitíssimo mais no que se pratica, do que no que se diz.

Haver um sistema de ensino que provoque capacidade crítica, que traga a dúvida aos lugares de certezas, que coloque alunos num sistema de ensino obrigatório, com uns tantos anos de duração, umas tantas matérias por ano, com um tal leque de áreas e não outro, etc.. Tudo isso é ideologia também. Mas a deste senhor, de facto, mesmo que ele não o perceba, realiza-se unicamente através de um sistema totalitário de suspeita permanente, delação iminente e censores expeditos a tirar consequências para os alegados prevaricadores das comparações.

Entretanto, com a onda eleitoral, o movimento ganhou balanço e já há quem passe à acção, pouco inibida. Saltou para as primeiras páginas uma deputada estadual recém-eleita que apelou aos estudantes do seu Estado, garantindo-lhes o anonimato, que filmem os professores em salas de aula. No seu Facebook, singra a miséria, intelectual e moral, entre exibições de arma em punho e apelos ao voto dizendo que a alternativa é “maconho-feminista”. É nestas grosserias sem filtro que o Brasil vai jogando o seu futuro.

Em Agosto passado, Bolsonaro apontava outra alternativa, mais limpa. Acabar logo com os professores introduzindo o ensino à distância em todos os níveis, o fundamental, o médio e até o universitário… Porque, disse ele, preto no branco, “ajuda a combater o marxismo”. E não disse ele, mas vai implícito, também porque assim se entrega uma geração de dezenas de milhões à tutela ultra-moralista de igrejas evangélicas que só mesmo como caricaturas traduzem a seriedade organizativa e educativa das igrejas católica e protestante. Nas redes sociais, vê-se a partilha de uma jovem manifestante pró-Bolsonaro a exibir um cartaz que transtorna todos os alicerces civis: “um bom conhecimento da Bíblia vale mais do que uma educação superior”.

Entretanto, já eleito, noticia-se que Bolsonaro vai mapear os mandatos dos reitores nas universidades federais, decerto para avocar a sua nomeação, sob o princípio da confiança política, e acabar com qualquer legitimação democrática própria. A intimidação já chegou aos colegas universitários, sobretudo se forem de ciências sociais, ainda mais se de algum modo o seu objecto de estudo envolver pensamento político, teoria social, espaço público e se estiverem habituados a um nível de liberdade de ensino, investigação e discussão tão amplo como o que se pratica nas universidades do mundo decente.

A manipulação mediática tem servido a este programa político de uma forma directa através de fake news visando opositores. Em entrevista concedida depois das eleições, Manuela d’Ávila, “vice” de Haddad, deu bem conta da ordem de grandeza do impacto: “70 perfis que publicaram notícias falsas sobre mim foram compartilhados 300 mil vezes e somam 13 milhões de visualizações.” Mas mais sistémico é um segundo contributo desta manipulação. Além de enganar o público em massa, anula a credibilidade do espaço público, e isso é o mesmo que anular a sua capacidade e utilidade pública.

Ora, mas esse não é mais do que o programa político de Bolsonaro, desactivar os poderes públicos, seja os do estado de direito seja o quarto poder. A esta luz, não foi apenas táctica, mas estrategicamente consistente a decisão de Bolsonaro não se disponibilizar para nenhum debate público com Haddad. Tanto quanto as conferências cheias de simplicidade diante do portão aberto da garagem da sua residência pessoal. Submeter todos os poderes públicos ao poder presidencial, para deles prescindir a favor de poderes não públicos, inescrutináveis, desprovidos sequer de critério para dizer o que é ou não corrupção. É isto o bolsonarismo que vem aí.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.