Segundo o Presidente da República “estar a sobrepor durante esses anos (2020 e 2021) a regionalização à descentralização é uma precipitação. É pôr o carro à frente dos bois.”(1)

Segundo a Constituição (nº 3 do art.º 127º), no acto de posse, o Presidente faz a seguinte declaração: “Juro por minha honra desempenhar fielmente as funções em que fico investido e defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição da República Portuguesa”. Ora esta estabelece no seu art.º 236º nº 1 que as “regiões administrativas” são uma categoria de autarquias locais, que integram, segundo o art.º 235º, “a organização democrática do Estado” português. É no mínimo estranho ver um Presidente da República considerar precipitado a instituição das Regiões Administrativas, mais de 40 anos passados sobre a entrada em vigor da Constituição.

Não é preciso recorrer ao lugar-comum de que o actual Presidente é Professor de Direito Constitucional e reputado especialista na matéria. Mas nada de admirar vindo de quem, há 20 anos, na altura presidente do PSD, patrocinou uma revisão constitucional com António Guterres, então primeiro-ministro, produzindo o imbróglio da exigência do duplo referendo para a institucionalização em concreto da regionalização. Ou seja, armadilharam o texto constitucional para que o imperativo constitucional da regionalização fosse praticamente impossível de concretizar.

Mas no jogo de palavras (e sombras) em que há muito é também um notável especialista, o Presidente da República, argumentou que não se devia agora precipitar a regionalização, porque estava em curso a “descentralização” do Governo, e que apenas após a conclusão desta será ajuizado regionalizar. Notável coisa! Isto é, agora distribuíamos as atribuições e competências da Administração Central (naquele jeito lerdo e oportunista do Governo) pelos municípios, e depois criávamos as regiões.

Com que competências e atribuições? No todo ou em parte, com as agora transferidas para os municípios? Ou outras, a transferir ainda da Administração Central? Ou, talvez melhor, regiões administrativas sem competências nem atribuições? É de uma clareza meridiana, que a descentralização a sério exige, para o bom equilíbrio e transparência do processo, a regionalização como operação prévia, para a adequada distribuição de atribuições e competências e correspondentes receitas públicas entre os três níveis de administração pública.

E que qualquer outra fórmula será uma pseudo-descentralização, uma fraude, no máximo a chamada “desconcentração” de serviços e de descarga dos seus custos, nos níveis autárquicos municipais, sem sequer a devida transferência de receitas. O que o Governo PS quer impor, com o apoio do Presidente da República.

Mas há mais. Disse também o Sr. Presidente da República: “Tudo o que é precipitado serve quem? Os adversários da regionalização”(1). Ora sabendo nós, e o país, que o Sr. Presidente é há muito, sem qualquer dúvida, um inimigo da regionalização, foi no passado e que se saiba ainda não fez nenhum acto de contrição, nem grito de Ipiranga regionalista, é caso para dizer “com a verdade me enganas”! De facto, com o carro à frente dos bois ou os bois à frente do carro, para a Presidência da República não deve haver regionalização. Apesar da Constituição.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

Nota: (1) Público, 07DEZ19.