É sábado de manhã, chove, ouve-se o guincho das gaivotas junto ao mar e assiste-se a uma invulgar procissão de dezenas de pessoas a marchar, a maioria de bicicleta, em direção à Avenida da Índia, para homenagear Patrizia Paradiso, a ciclista grávida de 37 anos que foi mortalmente abalroada por um carro naquele local.

Nesse mesmo fim de semana, ocorreram mais tragédias. Uma carrinha despistou-se em Carcavelos, projetando fatalmente para as rochas uma mulher de 30 anos que se encontrava no passeio. Junto a Linda-a-Velha, na A5, um acidente de carro motivou uma bombeira a sair da sua viatura (onde se encontravam os filhos) para prestar auxílio, tendo morrido atropelada. Poderia descrever os sinistros ocorridos no fim de semana anterior, e na semana anterior a essa, numa longa lista de vítimas de acidentes e atropelamentos.

Se quisermos recorrer a estatísticas, o “Público” escreve “Portugal apresenta índices de mortalidade de peões, por milhão de habitantes, superior à média europeia. Entre 2010 e 2018 foram 1397 as pessoas que, seguindo a pé, morreram nas ruas e estradas portuguesas. Quase 80% destas mortes aconteceram dentro das localidades.”

Num país onde o contexto cultural e social, bem como grande parte das políticas públicas, sempre favoreceram a hegemonia do carro, a transição para uma maior segurança rodoviária tarda em chegar. E porque tarda a chegar, o concelho de Lisboa tem sido o epicentro de uma polarização cada vez mais hostil entre aqueles que reivindicam uma cidade que acompanhe as tendências das grandes cidades europeias na aplicação geral das zonas 30 (circulação limitada a 30 km/h e considerada mais segura para peões) e da mobilidade suave (mobilidade não-motorizada), e entre aqueles que não pretendem abdicar do uso confortável do carro no interior de localidades, mantendo e ultrapassando velocidades de circulação, transformando o carro numa potencial arma em cada esquina.

Por estes dias, viver na Área Metropolitana de Lisboa é sinónimo de ouvir queixas constantes sobre falta de civismo dos condutores, é sinónimo de vídeos a circular nas redes sociais em que se assiste a manobras insanas que quase provocam colisões fatais, é sinónimo de denúncias de ciclistas como fundamentalistas que não respeitam o código da Estrada, é sinónimo de vias rápidas onde automobilistas circulam com velocidades dignas das autoestradas, mas achamos que esta deve ser a norma porque sempre foi a norma.

A Câmara de Lisboa está a preparar um Plano Municipal de Segurança Rodoviária cujo objetivo é conseguir baixar para zero o número de vítimas mortais em acidentes rodoviários na cidade, até 2030. Numa cidade com bastante oferta de transportes públicos é mesmo necessário aguardar até 2030? E até que ponto conseguirá envolver concelhos limítrofes?

Recordo-me do dia em que a circulação na Praça Marquês de Pombal foi totalmente interdita devido a uma manifestação. Atravessar aquela praça enorme sem o constante barulho dos carros e buzinas foi um momento inquietante. Naquele local, não estamos habituados à serenidade, aos sons da natureza, a poder atravessar uma via larga sem ter de olhar nervosamente para a direita e para a esquerda. No dia em que isso for possível será o dia em que começará a verdadeira revolução da vida na metrópole.