O dia 29 de maio de 2023 ficou marcado por mais uma onda de violência no Norte do Kosovo, região onde mais de 90% da população é de origem sérvia. Desta vez o motivo não se relacionou com matrículas de carros, mas com a tentativa de Pristina dar posse aos presidentes de câmara eleitos em quatro municipalidades de maioria sérvia.
Para compreender as causas desta onda de violência temos de recuar a 19 de abril de 2013, quando sob a égide da União Europeia (UE) as autoridades de Pristina e Belgrado acordaram estabelecer uma associação de dez municipalidades de maioria sérvia, plano que, até hoje, não foi implementado. Este acordo atribuía à minoria sérvia alguma autonomia, no quadro do Kosovo, integrando-a no seu sistema institucional, mas com duas condições: (1) os assuntos de natureza jurídica seriam resolvidos segundo as leis do Kosovo, mas nalgumas comarcas os juízes seriam sérvios; (2) o policiamento seria feito pela polícia do Kosovo, mas nas zonas de maioria sérvia o comandante da polícia seria sérvio, escolhido a partir de uma lista fornecida pelas municipalidades de maioria sérvia.
Este acordo foi mal recebido por largos setores da intelectualidade sérvia que o consideraram uma capitulação inaceitável e uma validação da independência do Kosovo. De facto, as cedências feitas por Belgrado foram imensas, entre outras, a participação dos sérvios nas instituições kosovares (magistratura, parlamento, governo, polícia, etc.). Na prática, as concessões mostravam a disponibilidade de Belgrado para abdicar de alguma soberania sobre a sua antiga província. O Acordo obtido deu um contributo importante para a normalização das relações com Pristina. Mas, apesar destes compromissos e daquilo que eles significavam, a criação de uma associação de municipalidades sérvias nunca foi por diante.
O diálogo entre as duas capitais continuou durante os dez anos que nos separam da assinatura do documento, com progressos em muitas áreas, mas não na primordial. Isto é, nos termos das relações de poder entre as duas maiores comunidades étnicas do Kosovo. A 27 de fevereiro de 2023, o primeiro-ministro kosovar Albin Kurti e o presidente sérvio Aleksandar Vucic, aceitaram verbalmente o acordo de Ohrid com vista a aprofundar a normalização das relações entre o Kosovo e a Sérvia, assim como o plano para a sua implementação, mediados pela UE. Este plano reiterava, entre outros aspetos, um assinável nível de autogestão da comunidade sérvia do Kosovo.
Em frontal oposição com o aquilo que tinha previamente acordado, comportando-se como um incendiário, Kurti veio uns dias mais tarde dizer que os sérvios não deveriam ter mais privilégios do que as restantes minorias. Contrariando o plano de construção de uma associação de municipalidades sérvias, em 23 de abril, cerca de um mês após o acordo de Ohrid, Kurti convocou eleições para quatro municipalidades de maioria sérvia, que estes boicotaram. Os presidentes de Câmara foram eleitos apenas com cerca de 3,5% dos potenciais eleitores. No caso de Zvecan, um município com cerca de sete mil eleitores registados nos cadernos eleitorais, o presidente da câmara albanês foi eleito apenas com 100 votos.
Apesar da falta de legitimidade das eleições e, consequentemente, dos eleitos, Kurti forçou as tomadas de posse recorrendo à proteção da polícia especial kosovar, cuja presença é mal aceite nas zonas de maioria sérvia. Para completar a provocação, a KFOR juntou-se à liça com a missão de conferir segurança à polícia especial, dando origem a uma confrontação violenta entre sérvios e militares da KFOR, que, extravasando a sua missão, sancionou a decisão de Kurti e tomou o partido dos albaneses. Embora possa nalguns casos não parecer, a sua atuação ainda se rege pela Resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas 1244. Washington e Bruxelas demarcaram-se de Kurti, que, com esta decisão, colocou – deliberadamente – em causa as iniciativas em curso de normalização das relações entre o Kosovo e a Sérvia.
A UE endureceu a sua posição em relação a Pristina, ameaçando suspender algumas partes do Acordo de Associação e Estabilização UE-Kosovo, o mecanismo que, desde 2015, orienta o relacionamento de Bruxelas com Pristina. Os EUA sentiram-se ultrapassados por Kurti ter levado esta ação por diante sem coordenar ou informar Washington. O Secretário de Estado Antony Blinken foi rápido a atribuir a responsabilidade por esta escalada a Pristina. Washington mostrou o seu desagrado de vários modos. Afastou o Kosovo da participação dos exercícios militares da NATO na Roménia (Defender Europe 23), e ameaçou não se empenhar na aproximação europeia e euro-atlântica do Kosovo. Esta crise provocada por Pristina foi desencadeada num mau momento, quando Washington e Bruxelas procuram que Belgrado adira às sanções contra a Rússia.
Perante a forte pressão da UE e dos EUA, Kurti “mostrou disponibilidade” para organizar novas eleições. Contudo, essa “disponibilidade” continuou a não resolver o principal problema: implementar a comunidade de municipalidades sérvias. A resposta adequada à crise deveria ser a implementação dessa comunidade e não a convocação de novas eleições. O caminho escolhido por Kurti mostra que sabe que pode esticar a corda e manter a tensão, sem ser punido, porque a probabilidade de vir a ser compensado, no longo prazo, é muito elevada. O arrastamento do impasse forçará a Sérvia, mais tarde ou mais cedo, a fazer mais concessões.
Por isso, não interessa a Pristina a normalização da situação, sendo-lhe conveniente manter a crise em lume brando. Isso não só explica o seu irredentismo, como explica a cumplicidade estratégica entre Pristina e Washington, apesar da voz grossa de Washington neste caso. O prolongado impasse em que nos encontramos há uma década é, acima de tudo, o resultado da complacência dos EUA com a falta de cooperação albanesa, uma vez que a influência de Bruxelas sobre Pristina não é comparável à de Washington.
Se, por um lado, Washington não abdicou de intervir na política interna da Sérvia e da ideia de instalar em Belgrado governos que lhe sejam obedientes, como aconteceu no rescaldo dos bombardeamentos de 1999, Kurti não desistiu de concretizar o seu objetivo estratégico, isto é, a independência plena e a criação de um estado unitário com a submissão completa e total da comunidade sérvia. A concretização desses dois objetivos está umbilicalmente ligada.
Como tal, o prolongamento da indefinição convém tanto a Pristina como a Washington. A não haver uma pressão determinada e convincente por parte de Washington – não expectável – sobre Pristina, não será de estranhar a repetição de momentos de elevada tensão provocados por Pristina, envolvendo violência, como foi agora o caso, sempre que Pristina perceba que daí possa advir vantagem política e sirva a concretização dos seus objetivos estratégicos.
Apesar da criação da comunidade de municipalidades sérvias ser um compromisso político aceite por ambas as partes, que reporta a uma soberania muito mitigada da Sérvia, não será difícil perceber porque é que não foi ainda criada. No dia em que Washington se comprometer firmemente com a implementação do acordo de Bruxelas, e deixar claro a Pristina de que não existe outra solução que não seja a de avançar com a sua implementação, as tensões entre o Kosovo e a Sérvia reduzirão, assim como também diminuirá a capacidade de Washington para interferir na política regional.