Jaime Mayor Oreja é um dos poucos políticos de incontestável credibilidade que a Espa­nha do presente ainda reconhece e conserva. Ganhou as suas estrelas de credibilidade enquanto ministro do Interior de José María Aznar, pela luta corajosa e sem tréguas que dirigiu contra a ETA, levando aos maiores golpes na organização terrorista que viriam a conduzir à sua autodissolução.

A sua credibilidade ficou impressa quando constou da shortlist que o próprio Aznar elaborou para a sua substituição à frente do Partido Po­pular e do governo de Madrid, que contava também com os nomes de Rodrigo Rato (atualmente em prisão por ligação a fenómenos de corrupção) e de Mariano Rajoy – que viria a ser o escolhido por Aznar para lhe suceder, com todas as errâncias e asneiras que o futuro veio a revelar.

Tudo isto é-nos relatado de forma detalhada pelo próprio Aznar, nas suas memórias políticas, publicadas há uns anos. Com a derrota clamorosa que Ra­joy sofreu nas últimas eleições legislativas e a substituição geracional que se produziu e levou Pablo Casado à liderança dos populares espanhóis, a geração de Rajoy viu-se pra­ticamente arredada do poder e os seus principais intérpretes conduzidos a uma reforma forçada e muito pouco edificante.

Desse grupo grande que governou Espanha durante os governos de Aznar e Rajoy, Mayor Oreja é dos poucos cuja voz continua a ser ouvida, escutada e respeitada. Há não muito tempo, em entrevista televisiva, Mayor Oreja brindou-nos com um conjunto de refle­xões que merecem uma referência e uma meditação aprofundadas.

Alertando para o facto de o mundialismo corrente estar a destruir a civilização cristã que durante séculos caracterizou e definiu o ocidente em que nos integramos, conjuntamente com a herança filosófica grega e a tradição jurídica romana, toda a intervenção de Mayor Oreja se cen­tra no essencial da atual política internacional, relegando para as margens do dispensá­vel quaisquer considerações sobre o acessório, o contingente e o irrelevante.

Um dos temas que merece a atenção particular do ex-ministro espanhol é, como não podia deixar de ser, a situação atual por que passa a União Europeia. E, como poucos, sintetiza-a de uma forma brilhante e lapidar. Em sua opinião, o projeto europeu que se iniciou no pós-segunda guerra mundial e se consubstancia na atual União Europeia, nas­ceu com um corpo reduzido mas com uma alma imensa.

Isto é, no início deste percurso, o corpo do projeto europeu era escasso ou reduzido. As suas instituições eram aligeira­das, a sua burocracia praticamente inexistente, a sua estrutura reduzida. Porém, pelo contrário, a sua alma era imensa. A crença nos princípios, a fidelidade aos valores, o respeito pela ética e pelo humanismo eram incomparáveis e foi precisamente aí que residiu a sua força, a sua capacidade mobilizadora, a sua mais-valia, a diferença relati­vamente a tudo quanto anteriormente havia surgido e despontado na Europa.

Com o passar dos tempos, porém, a situação inverteu-se. A União Europeia ganhou corpo – burocratizou-se, multiplicou as suas instituições, redobrou a sua burocracia, passou a interferir no quotidiano da vida dos cidadãos, ousou ganhar um poder regulamentar impensável no início do processo europeu.

Em contrapartida e a par disso, perdeu parte significativa da sua alma. Começou a tergiversar nos seus valores, a ceder nos seus prin­cípios, a questionar as suas raízes, a acolher correntes e doutrinas que minaram os seus pilares, que a enfraqueceram, que lhe retiraram força moral e que, inquestionavel­mente, a diminuíram e apoucaram no mundo do pós-Guerra Fria que nos cabe viver. O facilitismo e o comodismo ganharam o lugar da coerência e da coesão.

Por muito implacável que seja, este é um diagnóstico terrível, mas inapelável. A União Europeia dos nossos dias ganhou corpo na justa medida em que foi perdendo alma. Seria difícil conseguir-se melhor síntese da situação por que passa a Eu­ropa da União.

O problema que teremos pela frente, nos tempos próximos, pode colocar-se em dois planos – reduzir o corpo para retornar ao predomínio da alma. Cremos ser uma solução discutível, eventualmente contraproducente. Perante os desafios cada vez maiores que afetam o nosso mundo em geral e a Europa em particular, a União Europeia vai conti­nuar a ter necessidade de possuir um corpo, nomeadamente institucional e humano, adequado a fazer face ao número cada vez maior de solicitações que se lhe depararão.

Várias vezes já o escrevemos e entendemos dever reiterá-lo agora: o mundo, lá fora, move-se a uma velocidade estonteante e não se compadece com uma União Europeia paralisada, atrofiada e sem capacidade de resposta para as questões concretas com que, a cada dia que passa, se vê confrontada. E se a União não demonstrar capaci­dade de resposta adequada, o mundo virar-se-á para outros espaços económicos e po­líticos buscando os auxílios e contributos que a Europa, enredada nos seus conflitos internos, não for capaz de fornecer.

Será necessário, porém, será indispensável, mesmo, que a par da manutenção do seu corpo, a União cuide da sua alma – retorne aos seus valores e princípios, regresse aos seus fundamentos, recupere a sua matriz original e fundadora, retorne ao pensamento dos pais fundadores, recupere a ideia de Europa que esteve na origem deste magnífico projeto europeu que garantiu mais de meio século de paz para a Europa. Esse vai ser o desafio dos próximos tempos, dos tempos também ditos da pós-modernidade.

Só sabendo compatibilizar a dimensão do seu corpo com a fortaleza da sua alma pode­mos ter esperança nesta União Europeia, ou naquilo que dela ainda nos resta. Quando a União se prepara para proceder a escolhas determinantes para o seu futuro mais ime­diato, a esperança nessa sabedoria e nessa sageza ainda é o que alimenta a nossa espe­rança e nos faz renovar, a cada dia, a nossa crença.