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O declínio das democracias e o poder de atração dos modelos autoritários

Enquanto as democracias se debatem com uma crise de confiança e regressões em liberdades fundamentais (inclusive nos EUA e na UE), modelos autoritários como o chinês e o russo parecem assumir-se como alternativa. Que fatores contribuem para esta mudança de referências? A democracia é um modelo exclusivamente ocidental ou tem um carácter universal?
23 Julho 2018, 11h06

No final do século XX, derrubado o “muro de Berlim” e desintegrada a URSS, a História parecia obedecer como que a leis físicas de evolução (o progresso do historicismo hegeliano), movendo-se num sentido irresistível: o triunfo da democracia liberal ocidental e subsequente expansão ao nível global. “O Fim da História e o Último Homem”, proclamou o cientista político nipo-americano Francis Fukuyama, em 1992.

No ano anterior, o colega Samuel P. Huntington publicara “The Third Wave – Democratization in the Late Twentieth Century”, no qual identificou três vagas de democratização. A primeira vaga surgiu no início do século XIX, quando a jovem democracia dos EUA concedeu o direito de voto à maioria dos homens brancos, inspirando outras nações. No seu auge, a primeira vaga resultou em 29 democracias, mas os conflitos mundiais da primeira metade do século XX provocaram um refluxo e o número de democracias caiu para 12 até meados de 1945.

A segunda vaga desenvolveu-se sobre os escombros da II Guerra Mundial e atingiu o zénite em 1962, com 36 democracias. Seguiu-se outro refluxo e uma queda para 30 no início da década de 1970, mas não tardou o advento de um novo impulso com a “Revolução dos Cravos” em Portugal, a 25 de abril de 1974, dando início à terceira vaga que incluiu dezenas de transições democráticas na América Latina, Ásia-Pacífico, Europa de Leste e África subsariana. Na década de 1990, perante mais de uma centena de democracias no total (embora muitas ainda não consolidadas) e os EUA a assumirem o estatuto de hiper-potência solitária, Fukuyama vislumbrou então “O Fim da História”.

Contudo, a História regressou no dia 11 de setembro de 2001, sob a forma de atentados terroristas em solo norte-americano. Os fracassos de nation-building no Iraque e no Afeganistão, a ascensão da China e o retorno da Rússia à lógica da Guerra Fria (o velho jogo de soma zero) dissiparam o “momento unipolar” dos EUA. As “Primaveras Árabes” lançadas em 2010 pareciam estar a semear uma quarta vaga de democratização, com epicentro no Norte de África e Médio Oriente, mas fracassaram quase todas (ou degeneraram em guerras). De acordo com o relatório “Freedom in the World 2018” da Freedom House, há 12 anos consecutivos que se verifica um declínio na liberdade global.

 

“Enorme descontentamento”

Que fatores têm contribuído para esta crise das democracias? “O relatório parece indicar que poderemos estar a assistir a uma vaga de reversão democrática. Parafraseando Yascha Mounk, que publicou recentemente um livro sobre a crise da democracia liberal e a emergência do populismo, sucedem-se longas décadas em que a História quase parece estagnar e períodos curtos marcados por mudanças rápidas e intensas. Após cerca de duas décadas em que a democracia liberal, o capitalismo e os valores ocidentais em geral pareciam não ter rivais, sendo as principais fontes de legitimidade na arena internacional (não foi por acaso que Vladimir Putin adotou a retórica ocidental da defesa dos direitos humanos para justificar a invasão da Geórgia e a anexação da Crimeia), parecemos estar a viver um momento de rápidas mudanças, marcado pela atração pelo autoritarismo e o populismo a este ligado umbilicalmente”, responde Samuel de Paiva Pires, professor de Relações Internacionais na Universidade da Beira Interior.

“Julgo que a crise financeira de 2008 pode ser apontada como o evento inicial de uma série de acontecimentos e processos que estão na origem do momento atual. A turbulência que se lhe seguiu, quer nos EUA quer na Europa, com especial destaque para a crise do euro, veio fomentar a ideia de que na globalização económica há vencedores (as elites dos países mais ricos e as classes médias que emergiram na China, Índia, Brasil e outros países em desenvolvimento) e perdedores (as classes médias dos países desenvolvidos). Esta ideia, ainda que verdadeira, passou a ser habilmente utilizada e explorada por determinados políticos, populistas, em regimes demo-liberais com o duplo objetivo de conquistar segmentos do eleitorado prejudicados pela globalização e contestar as elites que a fomentaram ao longo das últimas décadas. Por outro lado, os níveis de desigualdade na distribuição de riqueza em países como os EUA ou o Reino Unido aumentaram ao ponto de ameaçarem a estabilidade social dos regimes demo-liberais”, sublinha Paiva Pires.

 

“A regressão democrática é tanto mais grave quanto inclui um certo número de países importantes, entre os quais alguns europeus (Brasil, Turquia, Filipinas, Venezuela, Hungria, Polónia). Os casos são diferentes e os fatores distintos, desde a expansão das correntes islâmicas até à corrupção política, passando pela ressurgência dos nacionalismos e movimentos racistas”, alerta Carlos Gaspar.

 

Por sua vez, Álvaro Vasconcelos, fundador do Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais de Lisboa, destaca três fatores: “Primeiro resulta da convicção dos cidadãos de que a sua capacidade para influenciar a política diminuiu profundamente e que as decisões são tomadas por forças que escapam ao seu controlo, como as forças do mercado e dos grandes financiadores das campanhas eleitorais; em segundo lugar resulta da falta de convicção democrática das elites dirigentes e a sua preferência por soluções tecnocráticas; e em terceiro lugar resulta do enorme descontentamento das classes médias dos países desenvolvidos que viram o seu nível de vida estagnar e, em alguns casos, regredir”.

Na perspetiva de Carlos Gaspar, investigador do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa, “a regressão democrática é tanto mais grave quanto inclui um certo número de países importantes, entre os quais alguns europeus (Brasil, Turquia, Filipinas, Venezuela, Hungria, Polónia). Os casos são diferentes e os fatores distintos, desde a expansão das correntes islâmicas até à corrupção política, passando pela ressurgência dos nacionalismos e movimentos racistas. Mas o quadro geral aponta para uma inversão da ‘terceira vaga’ de democratização e assinala o fim de um ciclo longo de expansão democrática internacional, que se iniciou com a viragem pós-autoritária e pós-colonial em Portugal”.

 

“Líderes fortes e autoritários”

Como é que se explica a crescente atração por modelos autoritários como o chinês e o russo? “Há uma atração maior pelos regimes autoritários, incluindo numa parte das elites europeias que se podem rever no regime fascista do presidente Vladimir Putin ou no regime comunista do presidente Xi Jinping. A insegurança, o medo da mudança e o fascínio pelo poder bruto explicam a viragem, que está longe de ser inédita. No século passado, uma parte importante dos intelectuais europeus aclamou, à vez ou em campos opostos, personagens tão sinistros como Mussolini, Hitler, Estaline e Mao”, argumenta Gaspar.

Por seu lado, Vasconcelos traça uma clara distinção entre os modelos russo e chinês. “No caso da Rússia, mais do que o modelo de organização da sociedade, em que muito poucos se revêem, o que lhe granjeia apoios é o nacionalismo de Putin e a sua capacidade para enfrentar os EUA. O caso do modelo chinês é diferente. Dado o seu sucesso económico e a saída da pobreza de centenas de milhões de pessoas, aparece como um modelo não para as democracias, mas para países com regimes autoritários e com problemas de pobreza sérios. Creio que o modelo que ganha adeptos em certos setores das elites é o que Viktor Orbán chamou de ‘democracia iliberal’, ou seja, um regime com eleições, mais ou menos livres, mas onde as liberdades fundamentais e o estado de Direito são frágeis. Pode inspirar-se em Putin, mas não se revê na Rússia”.

 

“O liberalismo comete um erro capital ao negligenciar a importância que os indivíduos dão à segurança não apenas entendida no sentido restrito, mas num sentido amplo que inclui as dimensões económica, identitária e existencial. A importância destas dimensões explica, em boa parte, a atração por ideologias totalitárias e por líderes fortes e autoritários”, argumenta Samuel de Paiva Pires.

 

Enquanto Paiva Pires aponta noutro sentido, afirmando que “o paradigma liberal dominante no Ocidente aspira à neutralidade no que diz respeito à concepção do bem e é esparso quanto a considerações sobre a virtude. Dá prioridade aos direitos dos indivíduos e à liberdade destes na definição e prossecução dos seus objetivos e das suas noções de vida boa, mas negligencia, quando não chega mesmo a contestar, entendimentos comunais do que seja uma vida boa e as virtudes necessárias para tal vida. Não surpreende, por isso, que a religião tenha sido remetida quase exclusivamente para a esfera privada, que o Estado soberano seja contestado de diversas formas e em vários níveis de atuação e que qualquer forma de nacionalismo, saudável ou degenerada, seja vista como uma ameaça”.

“Acontece que a liberdade individual, por mais importante que seja, não é garantia da adesão e respeito pelas normas democráticas, especialmente quando se descuida a promoção das virtudes cívicas. Como salienta Roger Scruton a partir de uma leitura de Huntington, a liberdade e a tolerância não são suficientes para defender uma civilização”, prossegue Paiva Pires. “O liberalismo comete um erro capital ao negligenciar a importância que os indivíduos dão à segurança não apenas entendida no sentido restrito, mas num sentido amplo que inclui as dimensões económica, identitária e existencial. A importância destas dimensões explica, em boa parte, a atração por ideologias totalitárias e por líderes fortes e autoritários, ou seja, por ideologias ou políticos que prometem responder aos anseios existenciais dos indivíduos e garantir-lhes meios para um modo de vida satisfatório”, conclui.

 

“Diversas culturas”

Os valores democráticos são intrinsecamente ocidentais e dificilmente poderão ser “exportados” para outras regiões como o Médio Oriente ou determinadas nações do Extremo Oriente? Ou acredita no seu carácter universal? “A democracia não é um modelo ocidental. Foi adotada e está a funcionar em diversas culturas na Ásia, África, América Latina e até num país árabe, a Tunísia”, responde Larry Diamond, fundador do “Journal of Democracy” e professor de Ciência Política na Stanford University (Califórnia, EUA). “Claro que, em muitos desses países, a democracia enfrenta desafios. Mas também os enfrenta na Europa e nos EUA. Não me refiro a ‘exportar’ a democracia, implicando que o Ocidente tem o modelo e os outros devem “importar” esse modelo. A democracia é um conjunto de regras básicas de autogoverno, Estado de direito e proteção de direitos individuais. As formas institucionais específicas devem ser adaptadas por cada país, atendendo às suas necessidades e circunstâncias”, sublinha Diamond.

 

“A democracia não é um modelo ocidental. Foi adotada e está a funcionar em diversas culturas na Ásia, África, América Latina e até num país árabe, a Tunísia”, salienta Larry Diamond.

 

Perante a mesma questão, Gaspar defende que “os valores da liberdade, do direito e da dignidade da pessoa humana têm uma origem humanista, cristã e ocidental e são universais. Os europeus, os americanos ou os asiáticos que defendem esses valores e a sua universalidade não têm que deixar de o fazer. E tanto melhor se incomodam os déspotas, os fanáticos e os terroristas de todos os bordos. Mas as democracias europeias, ocidentais ou asiáticas não devem cometer o erro de impor pela força os seus valores”.

Quanto a Vasconcelos, responde da seguinte forma: “Creio que a aspiração democrática é universal, aliás como demonstram numerosos estudos, por exemplo o ‘World Values Survey‘. Esta enorme sondagem mundial demonstra como não faz sentido pensar que os cidadãos dos países árabes não querem a democracia. Os egípcios não estão a ter eleições livres, não porque não as quisessem, mas porque a ditadura militar impôs, pelas armas, o fim do processo democrático e lançou na prisão 50 mil opositores”.

 

“Zona de paz liberal”

É possível ocorrer um “efeito dominó” de democracias a regredirem para regimes mais autoritários, em busca de uma maior eficiência económica? O denominado “Consenso de Pequim” poderá superar o “Consenso de Washington” no futuro próximo? “É difícil e arriscado fazer previsões sobre uma realidade tão ampla e complexa. Creio que essa possibilidade depende muito de como as sociedades demo-liberais lidarem com os movimentos populistas no seu seio e isto será determinante para percebermos se estamos mesmo perante uma vaga de reversão da democracia. Que é uma possibilidade, é algo que fica patente se considerarmos o número de obras que têm vindo a ser publicadas sobre este tema, especialmente por autores norte-americanos que começam a colocar em perspetiva a possibilidade de os EUA se tornarem um regime autoritário. Os EUA são o ator central na ordem liberal internacional, lideram aquilo a que Michael Doyle se refere como a ‘zona de paz liberal’, uma atualização da teoria da paz democrática derivada da ideia de paz perpétua de Kant, iniciada no século XVIII e atualmente composta por cerca de 100 países, pelo que a sua aparentemente inimaginável transição para um regime de carácter autoritário seria um golpe fatal na ordem liberal internacional e poderia certamente gerar um efeito dominó”, responde Paiva Pires.

“Todavia, penso que o alarmismo é manifestamente exagerado”, ressalva. “A democracia norte-americana certamente sobreviverá a Trump, os regimes demo-liberais encontram-se consolidados e, como Conceição Pequito salienta no livro “Qualidade da Democracia em Portugal”, recentemente publicado, a tese da recessão democrática resulta mais da ausência de processos de democratização em países não-democráticos do que de retrocessos democráticos, não sendo despiciendo referir que a maioria dos regimes autoritários existentes encontra-se em países que não possuem condições favoráveis para que aí ocorram processos de democratização”.

 

“As democracias podem reformar-se. Para isso devem repensar a relação entre partidos políticos e grandes grupos financeiros, devem tornar-se mais participativas e devem criar condições para uma verdadeira alternância política”, defende Álvaro Vasconcelos.

 

“Claro que podemos perguntar-nos se será desejável que estes processos ocorram (obviamente, o ‘ranking’ da Freedom House parte do princípio que sim), se os regimes demo-liberais devem procurar promovê-los e qual o impacto que estas transições podem ter numa ordem internacional que ainda se vai regendo pelos princípios vestefalianos do respeito pela soberania estatal e da não ingerência nos assuntos internos de outros Estados (mesmo que, frequentemente, na prática a teoria seja outra). O histórico de tentativas de exportação da democracia não abona a favor dos EUA e os resultados da ‘Primavera Árabe’ não foram particularmente animadores. Mas se partirmos da premissa de que a teoria da paz democrática está certa (a evidência empírica atesta-o, pois as democracias liberais não se confrontam militarmente), nada impede que as democracias liberais continuem a prosseguir a estratégia liberal aconselhada por Doyle, preservando a ‘zona de paz liberal’, quer em termos de segurança coletiva quer mitigando as consequências negativas da globalização e do funcionamento da economia de mercado (algo que me parece essencial para desarmar a retórica populista). E expandindo esta zona através da difusão dos seus valores políticos e culturais para países não-democráticos e intervindo militarmente apenas quando necessário para opor resistência a governos autoritários que violam sistematicamente os direitos humanos”, argumenta.

Para Gaspar, “é um erro pensar que o declínio conjuntural das democracias ocidentais anuncia a decadência irrversível do Ocidente. É o erro que cometem, tipicamente, as elites autoritárias em Moscovo ou em Pequim, que não aprenderam nada com a Guerra Fria, com a dissolução da União Soviética ou com as manifestações de Tiananmen. De resto, o modelo chinês já teve uma maior projeção internacional do que tem hoje, quando as consequências da sua penetração externa, nomeadamente em África, se começam a fazer sentir mais negativamente”.

Ao passo que Vasconcelos crê que “as democracias podem reformar-se. Para isso devem repensar a relação entre partidos políticos e grandes grupos financeiros, devem tornar-se mais participativas e devem criar condições para uma verdadeira alternância política. Na Europa, o progresso na democratização do processo europeu ajudaria a uma regeneração das democracias dos estados-membros. A este propósito é de salientar a má notícia que foi a recusa de listas supranacionais para o Parlamento Europeu”.

 

[*] Artigo originalmente publicado no dia 29 de março de 2018.

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