O confinamento que se viveu nestes meses teve muitas expressões, económicas, sociais, mas foi também político. Os três decretos presidenciais de estado de excepção restringiram direitos, o primeiro deles muito provavelmente ferido de inconstitucionalidade, algo a que um dia, presumo, quem fizer a história das vicissitudes da nossa Constituição dedicará algum tempo.

Sim, o direito de resistência não podia ter sido suspendido quando os outros direitos estavam mais fragilizados. Além disso, não nos manifestámos, não se fizeram comícios, calámos protestos que são como o ar que uma democracia viva respira. Quando se usa a imagem da suspensão da respiração para dar conta do confinamento, dificilmente ele se aplica melhor do que à democracia. Ela não foi suspensa, mas apenas porque ela mesma suspendeu controladamente a sua respiração. A diferença é ténue e só não colapsa se a democracia retoma, por movimento próprio, autodeterminada, a sua respiração.

Por isso, o desconfinamento que começámos, económica e socialmente, teria de acontecer também de forma política. Era urgente que irrompesse, tão global como o foi o confinamento, pelo menos em uma certa globalidade ocidental. Um grito, um sonoro encher pulmões de quem susteve a respiração muito tempo, debaixo de água, e finalmente volta à superfície. O princípio foi a manifestação do passado sábado em Portugal e um pouco por todo o mundo onde ainda podem acontecer manifestações deste tipo, na sequência do crescendo de protestos em Minneapolis e por todos os EUA.

O fósforo foi a morte de George Floyd ou, mais exactamente, a maneira indigna – a transpirar racismo por todos os poros – como nos dias a seguir à sua morte se achou que não havia consequências a tirar, na complacência tácita de que a cor o permitia. Os minutos de suspensão da respiração de Floyd, aquela frase terrível “I can’t breathe!” foi o sofrimento do racismo que chegou, sufocante, pelos vídeos e que, contudo, foi também um pouco reconhecível no confinamento que todos experimentámos, ainda que de formas muito desiguais. E no confinamento da democracia.

A sociedade norte-americana sentiu o significado daquelas palavras de todas as formas que elas podiam significar, ligou-as e reagiu. Foi o fósforo do racismo, mas todos os outros fósforos de uma caixa de fósforos chamada AmericaA imagem é de Michelle Goldberg, colunista no NYT. America em itálico para não ter de dizer EUA nem assumir que se fala do continente americano. Trump é o pirómano. Quis fazer muros à volta da sua “America great again” e acabou a construí-los bem dentro da sociedade americana, incapaz de perceber como este vírus mata e faz sofrer na proporção dura da desigualdade que encontra, mas capaz de ordenar “Dominate them!” visando um “eles” que são, no essencial, o futuro do seu país, negro, hispânico, branco, americano. Poucos gestos podiam ser menos patrióticos do que os de Donald Trump.

É discutível a influência humana no aparecimento deste vírus. É menos discutível a influência humana na forma e velocidade como uma epidemia local se converteu numa pandemia. Ainda assim, talvez não faça muito sentido falar em responsabilidades particulares num contexto de globalização para que contribuímos todos os dias na forma como consumimos e produzimos. Mais certo é que a catastrófica resposta à Covid-19 nos EUA, no Reino Unido  (que, entretanto, arrepiou caminho) e no Brasil é indissociável de um fenómeno de responsabilidade exclusivamente humana – o populismo. Também morreram muitos milhares de pessoas em democracias consolidadas e pouco dadas a esse desvario político.

Na Europa, o número de vítimas na Bélgica parece acima de qualquer outro Estado-membro da UE. Contudo, é preciso levar em conta o facto de as autoridades belgas terem adoptado um critério de contagem de vítimas de enorme transparência, que inclui casos testados mas também casos suspeitos, mesmo se não testados.  É exactamente o oposto da conduta política populista, cujo padrão de acção é primeiro negacionista, depois relativizador, pouco focado na acção que realmente importava levar a cabo, a agir sempre contrafeito, quando não mesmo desafiador de cuidados de saúde pública imperativos, que se traduziu em números de vítimas mortais mais elevados. Mesmo excluindo a contabilização de casos suspeitos, ou não os testando para que assim não sejam contabilizados.

Ou, como se discute agora no Brasil, certamente à margem do estado de direito democrático, chegar ao ponto de se abdicar da transparência para deixar de informar a população dos dados relativos à progressão da doença no país. Este negacionismo arroga-se o direito de desprezar a realidade inconveniente, de virar-lhe as costas, mesmo que isso signifique vidas humanas. Não é uma matriz diferente da dos outros negacionismos – o científico, que os terraplanistas exemplificam, e o histórico, que habitualmente acompanha as reivindicações fascistas.

É difícil não olhar para os números de vários estados da costa leste (por onde o vírus entrou nos EUA) como resultado, em grande parte, desse negacionismo inicial da doença. Nova Iorque, Connecticut, Massachusetts, Nova Jérsia, quatro estados em que morreram já mais de 1 em cada mil pessoas. No primeiro destes quatro estados, 1 em cada pouco mais de 600 pessoas. Provavelmente, cada residente sabe de alguém que morreu desta forma.

O prolífico Slavoj Žižek, que depressa publicou “Pandemic!”, torna a fazer neste livro uma evocação que fez em obras anteriores dos cinco estágios do luto de Elizabeth Kübler-Ross, propostos como etapas do processo psicológico do sofrimento (a negação, a raiva, a negociação, a depressão, a aceitação), para compreender as nossas reacções à epidemia.

A sucessão é tentadora, e é sempre tranquilizador ter um fio da meada, sobretudo se traz a promessa de um ponto de chegada conciliador. Mas é muito discutível a sua aplicação a tantos contextos como pretende Žižek. Por exemplo, não é nada óbvio que não tivéssemos por cá começado pela aceitação, precisamente o último dos estágios. Contudo, se aplicado ao populismo, pelo menos os dois primeiros estágios – negação e raiva – parecem fazer todo o sentido. Nega-se a verdade e projecta-se raiva sobre quem contesta a negação.

Simplesmente, a sequência tende a evoluir noutra direcção que não a que o modelo de Kübler-Ross prevê. Não a negociação, a depressão e, finalmente, a aceitação, mas abuso de poder, obstinação, autoritarismo, mesmo repressão, até que num momento o populista tem de ser confrontado e deposto, obrigado a renunciar ou, ao menos, a passar a estado politicamente inerte.

Mais vale esperarmos sentados que Trump ou Bolsonaro se deprimam e acabem aceitando o que quer que seja. Mais do que os estágios do luto é mesmo a ordem narrativa do Macbeth o que convém para perceber o desenlace shakespeariano destas figuras demasiado poderosas do nosso tempo e que, politicamente, não podem ser dissociadas da mais elevada mortalidade de Covid-19 nas respectivas sociedades. Como acontece na tragédia, em algum momento alguém, algum poder legítimo, deve poder repor uma normalidade – é dessa que devíamos falar – e gritar como o capitão Macduff depois de vencer o tirano: “o tempo está livre!” Como se nos fosse devolvida a respiração.

Por todos estes motivos, mais literais ou mais figurados, urge verdadeiramente um desconfinamento político pela democracia, que precisa de tornar a respirar a plenos pulmões, mas também muito concretamente, aqui e agora, contra o populismo, e os seus modos de negacionismo e raiva, que encontram no racismo ou na xenofobia corpo e vida para exprimir poder de violência.

Sábado passado aconteceu desconfinar politicamente, com a dose de inesperado sem a qual nenhum acontecimento é genuíno, irrupção além de uma mera ordem de coisas já dispostas. Em Portugal, foi particularmente importante por duas razões.

Primeiro, porque habitualmente não são tão expressivas as adesões a manifestações anti-racistas. Compara-se com a de protesto contra a violência racial que feriu Cláudia Simões ainda há meses e que apenas mobilizou escassas centenas de pessoas. Segundo, porque aquando da violência que vitimou mortalmente o cidadão ucraniano Ihor Homenyuk, nas instalações do SEF no aeroporto de Lisboa, o país já estava em confinamento. Além disso, houve uma pronta resposta das autoridades, com demissão da direcção e detenção dos inspectores envolvidos no homicídio, precisamente o que tardou nos EUA. Ainda assim, ficou uma consciência da falta, da catarse social por cumprir. A vontade da democracia e da sua expressão plena de volta. Na rua, que é o espaço público em estado puro.

Mas esta urgência não pode atropelar a atenção democrática. O desconfinamento não é simplesmente o fim do confinamento e das suas desigualdades. Traz outras desigualdades e mantém as anteriores num regime de menor intensidade, mas presente. Porque o desconfinamento é apenas parcial. Se não forem outros, pelo menos o confinamento da máscara, e da voz e do rosto público por detrás, prossegue, o que não deixa de rarefazer o espaço público.

O confinamento de que vamos saindo pôs-nos meses dentro de casa e, dessa maneira, pôs fora, bem à vista, todas as desigualdades. Sem almofadas e incrementadas: por se estar numa condição de desigualdade, morreu-se mais facilmente, perdeu-se o emprego, ficou-se em lay off, sofreu-se e perdeu-se mais por se ter menos. Mas pensar que o desconfinamento fosse por isso a interrupção desse exacerbamento da desigualdade é um erro de perspectiva. O desconfinamento arrisca a fazer dos mais velhos, e, mais geralmente, dos portadores de factores de risco, uma minoria, tão politicamente vulnerabilizada na sua igual dignidade como outras minorias. E isso não podemos querer. Atenta contra a solidariedade e a igualdade intergeracionais.

A democracia precisa de se desconfinar, mas se para isso obrigar uns a confinar-se mais, então não estará a fazer bem. A inclusão é a regra de ouro da democracia. Trazer para dentro os que não tomam parte, não deixar cair os que tomavam parte, alargar sempre o círculo de inclusão.

A democracia é uma luta de fronteira pelo cuidado da passagem para dentro. Por isso, a política de fronteira é tão evidenciadora de que democracia somos agentes. Haverá sempre interesses instalados a contrariar a inclusão e que se munirão de razões. Foi assim com a raça e a etnia, foi assim com o género, foi assim com o capital que uns têm e outros não. Entre o privilégio das posses e a posse do privilégio são muitos os matizes, mas estabelecem-se como um contínuo que garante uma fronteira fechada à inclusão. E onde uma fronteira se fecha, logo outra e outra fazem o mesmo.

A interseccionalidade é uma identificação de desigualdades sobrepostas que se amplificam, condenando geralmente quem está no círculo de uma a cair no círculo de outras, como anéis de grilhões que se encaixam uns nos outros. O que esta pandemia tem evidenciado. Por exemplo, foram os mais velhos pobres e negros que mais morreram na costa leste dos EUA.

Por estes motivos, é essencial perceber e defender um compromisso activo de que o desconfinamento da democracia não pode torná-la exclusivista. Sejam quais forem as dificuldades. Esse é o maior desafio do desconfinamento político em regime de restos de confinamento que persistirão – não sacrificar, pelo contrário, recriar as condições da maior inclusão, sem ceder à tentação de hierarquizar exclusões, ou relativizá-las, o que apenas as redobra e delas faz ainda um terreno de poder.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.