Nestes tempos conturbados que atravessamos é importante não perder as referências para nos podermos situar e tentar entender o que está a acontecer.
Todavia, a tarefa não se afigura fácil porque o que está a produzir-se, mais do que um confronto entre posições, mais ou menos nacionalistas ou histriónicas é, precisamente, uma alteração radical das condições objetivas que durante as últimas sete ou oito décadas produziram as referências com que pensámos a dinâmica das relações económicas e políticas internacionais. Particularmente no que respeita às relações dos Estados com o chamado Resto do Mundo.
Como é sabido, a primeira metade do século XX é marcada pela substituição da hegemonia britânica, na Economia Global pela hegemonia americana que se consolida no período do pós-guerra, alicerçada, fundamentalmente, num sistema monetário internacional ancorado no dólar e num sistema de instituições económicas internacionais, formatado à medida das necessidades especificas da afirmação da hegemonia económica global dos EUA.
Esta reconfiguração do sistema de relações económicas internacionais foi institucionalizada em 1944, na Conferência de Bretton Woods. E não deixou de ter oposição, designadamente manifestada pelos ingleses através da proposta alternativa de Keynes de criação de uma moeda internacional – o bancor. A injeção de liquidez internacional através do dólar, os fortes investimentos das empresas americanas no exterior e o Plano Marshall, foram os principais veículos de recuperação da economia europeia e internacional, produzindo uma dinâmica sustentada de crescimento do produto e de níveis de vida, sem paralelo na História moderna do capitalismo.
A primeira grande crise deste novo sistema económico internacional aconteceu no início dos anos 70, com a forte deterioração da balança de pagamentos americana, e a saída de ouro dos EUA, que levou à suspensão da convertibilidade-ouro do dólar, decretada unilateralmente por Nixon, em 1971. A enorme subida do preço do petróleo que se seguiu, ao lançar sobre a Europa e o Japão o ónus da crise, veio dar ao dólar um novo fôlego, permitindo recuperar a hegemonia americana que se afirmou em novos moldes, nas décadas seguintes, sobretudo com a integração da China na Economia Global, que culminou com a adesão à OMC em 2001.
A segunda grande crise ocorreu em 2008-2009, em resultado do esgotamento deste novo modelo económico que reproduziu em grande parte o modelo anterior. Desta vez através da articulação dos chamados défices gémeos com a injeção de dólares como meio de pagamento e o seu retorno à origem através da compra de títulos de dívida pública e de outros ativos americanos. Um sistema económico, informalmente designado de Bretton Woods II, para realçar a semelhança do papel do dólar com Bretton Woods I.
Nesta segunda crise, o processo de reconfiguração do modelo económico ainda está em curso e a resposta americana atual, mais não é do que uma tentativa de produzir uma nova hegemonia. Mas, desta vez, aparentemente através de uma alteração radical do sistema de relações geoeconómicas e geopolíticas que se construíram com o pós-Segunda Guerra Mundial, até aos nossos dias.
Talvez por isso seja legítimo duvidar de que o “dia da libertação” de Donald Trump, 2 de abril de 2025, fique na História da Economia Global como ficou o “dia da suspensão unilateral da convertibilidade do dólar” de Richard Nixon, de 15 de agosto de 1971. Até porque o Mundo não é o mesmo.