No Verão de 2035, numa noite quente em que apetecia ficar na esplanada até tarde, as luzes comerciais da cidade começavam a pulsar incessantemente, ofuscando o encanto natural de um fim de tarde dos velhos tempos. O último raio de sol sumia-se por entre os telhados, deixando o céu pincelado de tons rosados, mas eram já poucas as pessoas que desviavam o olhar dos ecrãs para fitar a beleza no horizonte.

Ao som de ruídos infernais de rap psicadélico disparados por uma coluna à saída do bar da praia, Eva tenta concentrar-se numa rápida consulta à Plataforma Integrada de Transacções Virtuais e apercebe-se de que não é possível consultar os últimos movimentos da sua conta. Aguardava uma transferência de um amigo e também aguardava sinal do ordenado desse mês, que já devia ter caído naquele dia. Bebeu o último gole de limonada com alguma impaciência e desconforto, mas não queria permitir que minudências e falhas técnicas lhe roubassem a serenidade possível naquela noite.

Tentou manter-se tranquila, mas a fúria acabaria por irromper ao fim de poucos minutos. Não só se viu escorraçada do bar por não conseguir efectuar o pagamento do lanche com o seu implante biométrico, como percebeu que a aplicação de táxis autónomos acabara de ficar fora de serviço no seu telemóvel. É aí que Eva começa a sentir o chão a fugir sob os seus pés.

Apesar do adiantado da hora e do caos habitual aos fins-de-semana, decidiu procurar a estação de metro mais próxima para tentar chegar a salvo a casa. No meio da pressa e de algum desespero, confiava que ainda teria viagens carregadas na sua aplicação da rede pública de transportes, mas afinal não. Passara 30 minutos a caminhar em direcção àquela estação de paredes encardidas e portões enferrujados e, no fim de tanto esforço e sede, continuava apeada. Era-lhe impossível comprar uma simples viagem de metro ou comprar uma garrada de água, pois todas as transacções eram agora digitais.

Desde há cerca de 5 anos que a moeda digital vigorava como exclusiva forma de pagamento, depois de ter sido imposta gradualmente como alternativa mais eficaz, transparente, higiénica e cómoda. Quem é que poderia resistir a essa ferramenta moderna da governação centralizada, rumo ao progresso, à inclusão e à paz total? Só pessoas tacanhas ou rebeldes é que desconfiariam das boas intenções e maravilhas de uma novidade que, desde as origens, aparecia aos olhos do mundo como solução para combater a inflação, ou práticas ilícitas como o branqueamento de capitais, a evasão fiscal, todas as formas de tráfico, a corrupção e o suborno.

Mas voltando ao mundo real daquela sombria noite de 2035, a verdade é que Eva nunca imaginou que um final de tarde de descontração se transformaria num tormento sem fim. Sem solução à vista, fez-se outra vez ao caminho, em direcção a casa, sabendo que demoraria cerca de 2 horas a percorrer todo o trajecto. Foi então que se cruzou com um Terminal Público de Cidadania e Transacções. Finalmente poderia consultar uma informação mais completa sobre as malditas falhas técnicas.

No momento em que aproxima o pulso do visor do terminal, o aparelho emite um estrondoso sinal sonoro, projectando a mensagem breve e seca: “Utilizador bloqueado por tempo indeterminado: a sua conduta foi considerada subversiva pelo Observatório da Conformidade Social e da Diversidade.” Eva sentiu-se congelar de impotência perante aquela mensagem impessoal que não oferecia mais explicações, nem admitia questões por parte do utilizador. Restava-lhe aceitar e seguir caminho até casa.

Uma noite conturbada converter-se-ia rapidamente num desafio de sobrevivência solitária, já que Eva habitava agora um limbo, lançada num apagão individual, sem identidade, sem comunicações e sem dinheiro. Quanto tempo teria de esperar até reaver a sua autonomia e meios de subsistência? Será que iria durar dias, semanas, meses? Era uma completa incógnita. Decerto, teria agora muito tempo para vasculhar as suas memórias e procurar descobrir o que teria feito para merecer tal castigo. Sabia que era cuidadosa nas redes sociais e tentava manter-se alinhada com os valores dominantes do partido, tanto entre amigos, como no local de trabalho.

As possíveis causas daquela punição eram infindáveis… muito além do que a mente da Eva poderia alcançar. Estava tão acostumada às facilidades de ter o dinheiro sempre à mão, de ter a actividade financeira cruzada e dependente da sua identidade digital, de pagar todos os impostos em segundos e de fazer todas as compras com o mínimo de esforço, que nunca tinha parado para pensar que todas as suas acções, das mais públicas às mais íntimas, estavam a ser continuamente rastreadas e controladas pelo Estado.

Lembrava-se vagamente de quando uns eurocratas cinzentos tinham garantido que nunca ousariam programar e limitar as transacções dos cidadãos e que o dinheiro digital seria uma forma de proteger a segurança nacional e de identificar terroristas. E era isso que pensava… “quem não deve, não teme, não é Eva?” Que ingenuidade. Longe iam os tempos em que as pessoas atiravam notas para cima dos balcões para pagar no restaurante, na mercearia, ao mecânico e à cabeleireira, ou que amigos e familiares emprestavam dinheiro uns aos outros.

Agora, em 2035, cada cidadão tinha todos os seus passos diários totalmente gravados num histórico de preferências, compras, transferências, viagens, doações, poupanças, visualizações de vídeos e aquisições em geral.

Ao chegar finalmente ao seu prédio, Eva subiu as escadas sem pressa, cada degrau ecoando a pesada realidade da sua nova condição. Já no interior do apartamento, o silêncio parecia ter uma densidade estranha. Então, enquanto os minutos se arrastavam na penumbra da sala, a sua mente começou a percorrer o labirinto das últimas semanas. Talvez tivesse sido uma citação que partilhara sem pensar, algo retirado de um filósofo clássico que alertava para a tirania da irracionalidade colectiva. Ou talvez tivesse sido pelo vídeo que assistira numa noite de insónia, de elogio à cultura clássica e com imagens dos mais belos monumentos da Europa. Talvez tenha sido esse pequeno acto de nostalgia e curiosidade que a condenou.

E então, como se a memória lhe fosse soprada ao ouvido, Eva recordou-se de uma tarde de Primavera, quando visitara a casa dos pais no campo. Tinham passado horas a conversar à volta da mesa depois de almoço. Riram-se ao encontrar notas antigas que o pai, por teimosia e saudade, mantinha guardadas numa gaveta do escritório. “Dinheiro à antiga”, disse ele, piscando-lhe o olho, enquanto contava que algumas pessoas usavam essas notas de forma clandestina, num circuito de troca directa que resistia ao controlo do sistema centralizado.

Foi aí que se fez luz! Eva recordava-se de ter usado uma dessas notas para pagar a uma vizinha da aldeia por umas caixas de frutas e um frasco de mel. Apenas um gesto inocente, um eco de tempos mais livres, mas que chegou ao conhecimento do Observatório da Conformidade Social e da Diversidade, possivelmente porque Eva ficou tão encantada que confidenciou a experiência a uma colega de trabalho. Mas quando vivemos num universo de autómatos obedientes, em quem podemos confiar?

O que a fez estremecer não foi o facto de estar a ser punida por algo tão banal, mas a constatação de que todos os seus pensamentos sobre o sistema não passavam de uma frágil ilusão. Eva acreditou que mesmo na mais inocente das transacções, pudesse existir algum espaço para a liberdade.