Exatamente como num filme do faroeste, os presidentes do Brasil e dos Estados Unidos ameaçam os seus povos com esta simples escolha: poderemos salvar as vossas vidas, mas perderão os vossos empregos, as vossas poupanças, as vossas casas. Se voltarem ao trabalho, manterão tudo isso embora, possivelmente, possam perder a vossa vida.

De uma forma mais subtil, ou não fôssemos europeus, os holandeses, os austríacos e os finlandeses propuseram-nos um comércio semelhante: querem a nossa ajuda? Façam o favor de se preparar para anos de austeridade que precisamos ser reembolsados, com juros, se faz favor.

Personagens como estes são fáceis de identificar e repudiar. As suas opções escrevem-se a preto e branco e facilitam a escolha. Não há maior valor que o da vida humana, portanto a pessoa sensata responderá sempre e de forma inequívoca que mais vale um pobre vivo que um rico morto. No entanto, à medida que o tempo passa, aproximar-nos-emos inevitavelmente de escolhas maniqueístas, ficar em casa ou ficar doente, arriscar ou cair no desemprego, abrir a loja ou abrir falência.

E é neste contexto que, em país após país, se começa a equacionar a reabertura progressiva da economia. Nos exemplos trumpianos evocados a evidência ditaria que é cedo demais. O Brasil está confrontado com a fase ascendente da epidemia. O número de infetados e mortos é desconhecido pois os testes dispensados são muito reduzidos e as contagens erráticas. Apenas estudos paralelos, efetuados por jornais e universidades, nos permitem ter uma visão real do que está a acontecer e apontam para ente dez a 15 vezes mais óbitos que os declarados, de 20 a 30.000.

Nos EUA, há verdades desiguais. Na Califórnia o contágio parece controlado, enquanto em Nova Iorque a situação ainda é preocupante. Para que tenhamos uma ideia, o estado de Nova Iorque tem cerca de 20 milhões de habitantes, o dobro de Portugal, mas conta com 260.000 infetados e mais de 20.000 mortos a um ritmo de cerca de 500 diários. Ou seja, se por cá fosse idêntico, já teríamos 130.000 infetados e cerca de 10.000 mortos e estariam a morrer 250 pessoas por dia.

Imaginamos as nossas autoridades a abrir a economia quando ainda se verificassem centenas de óbitos por dia, como é o caso em Nova Iorque? Creio que não.

Que fazer, então? Sabemos, de epidemias passadas, sobretudo a de 1918, que as pandemias de raiz gripal tendem a vir em duas e três vagas. O diretor do CDC, em Atlanta, pensa mesmo que, no próximo inverno, a situação será pior do que a que estamos a viver. A situação não terá remédio tão cedo, está para ficar.

Lamentavelmente, pois vai haver um momento em que passaremos a atribuir um valor monetário à vida. Sobretudo porque se trata de vidas de quem já muito viveu, os mais velhos, principalmente acima dos 70 anos. Ouviremos argumentos, como já começam a surgir, que haverá milhares de mortos de fome pela paragem absoluta da economia e, como sempre, nos países mais pobres. Reouviremos que o suicídio por razões económicas vai disparar. Escutaremos ainda que a única forma de resolver o problema será isolar os mais velhos e deixar que o resto da sociedade retome a sua vida normal.

Todas estas formas de pensar traduzem o que se diz em título: existe mesmo um valor monetário para a vida e ela vale tanto menos quanto mais pobres ou mais velhos formos. Mas, o que está hoje em jogo, não é apenas a continuidade da economia, é a continuidade da civilização, com os valores que humanamente lhe emprestámos. A democracia fez-se para que as minorias tenham uma voz e possam defender-se. A maioria sempre tem forma de impor a sua vontade.

É por isso que, haja o que houver, diga-se o que se disser, não podemos ceder perante o caminho fácil, sobreviver de qualquer forma, desde que no final haja fábricas ou bancos a operar. Se, pelo meio, perdermos a nossa capacidade de compaixão, de defender as minorias, os mais pobres, os mais velhos, os imigrantes e os deslocados, então sim teremos pago um preço humano e civilizacional demasiado elevado. No momento em que estivermos confrontados com a escolha, o dinheiro ou a vida, saibamos coletivamente gritar: a Vida!