São noticiados diariamente acontecimentos que revelam aqui e ali manifestações massivas contra os poderes estabelecidos que parecem divorciados das questões que esses indivíduos reclamam. Os coletes amarelos assinalaram o primeiro aniversário das suas manifestações, em que as cidades mais importantes de França e, sobretudo, Paris ficaram viradas do avesso por uma população que não se contentava com as respostas tradicionalmente dadas pelo sistema político à turbulência social. Contudo, este fenómeno alastrou a todas as latitudes e longitudes.

Enumerar a quantidade de países a enfrentar contestação social e política, porque estas andam sempre ligadas e as questões políticas são sempre também questões sociais, não é fácil. Da Europa à Ásia, passando pelo Médio Oriente e pela Ibero-América, as ondas de protesto afirmam-se e confirmam-se. Em comum, a desilusão com os respetivos sistemas políticos e a reivindicação de uma nova redistribuição de poder e de riqueza, tanto em democracia (formal ou real) como em regimes autoritários. Afinal, todos solicitam o direito de viver em paz, porque, como diz o politólogo norte-americano Michael J. Shapiro, a primeira frente de conflito é sempre a interna.

Cabe-nos agora perguntar como é feita a receção destas manifestações. Como chegam até nós? As notícias chegam-nos desiguais e descontextualizadas. Abrem-se telejornais com os dois mortos fruto do confronto entre manifestantes e forças policiais em Hong Kong, mas nada se diz sobre as mais de 20 vítimas mortais no Chile e os seus 2.200 feridos, resultado de recontros idênticos aos que se assistem no primeiro território. A assimetria da cobertura destes eventos sociais extremos e o tratamento destes acontecimentos como fenómenos pontuais, quando se estão a tornar surtos de contestação sociopolítica durável (chegando a ultrapassar um mês o período de protesto) turva a compreensão sobre os mesmos e a distinção de causas e consequências intrínsecas a cada um deles.

De todos estes conflitos, escolhi um, por duas razões – uma devido ao facto da autora deste artigo ter estado neste país no período de contestação social, a outra porque é um dos casos menos abordados pela imprensa nacional. O Chile foi o país escolhido, pelas razões enunciadas, mas por tantas outras que poderia referir.

O Chile sempre foi considerado um dos países mais estáveis da América Latina, bem como um dos que tem maior índice de desenvolvimento. Assim, sem contexto, a revolta social preconizada no Chile parece contrariar todas as indicações que a imprensa internacional dava sobre o país, considerado um milagre no contexto muitas vezes tumultuoso da América Latina. Será que o Chile se tornou num paradoxo? Ou será que os olhares sobre este país eram superficiais?

Um país em estado de emergência

Cheguei ao Chile no domingo em que era decretado o estado de emergência. Para sair do aeroporto recebi um salvo-conduto, sem o qual não poderia abandonar o local e chegar ao hotel. Ia entusiasmada para mais uma viagem de trabalho que me levaria ao país das pampas, de Pablo Neruda e Isabel Allende que descobrira na adolescência e da nova música chilena que trouxe até mim a presença dos Andes. A viagem era promissora. Chegada a Santiago do Chile percebi que a minha visita ao Chile seria algo diferente. Apesar de todas as dificuldades e integrada numa equipa de investigadores de uma rede denominada CoopMar – Cooperação Transoceânica, logrei chegar a Valparaíso, nosso destino final. É nesta cidade, cujo centro está classificado pela UNESCO como património da humanidade, que funciona o Parlamento chileno e onde iríamos desenvolver as nossas atividades.

Aí pude viajar pela complexidade sociopolítica chilena e perceber que mais do que literatura e música, estaria perante tudo aquilo que tinha inspirado aqueles músicos e escritores a lavrarem as suas cantigas e textos. O Chile tornou-se numa experiência política e social que pude relacionar com as histórias de vida e relatos daqueles artistas que me tinham despertado a curiosidade sobre o país.

Desde o primeiro dia presenciei manifestações que eram alvo de intervenção policial massiva, mesmo que não estivessem a ocorrer distúrbios. Pude testemunhar o uso excessivo de gás lacrimogéneo e as declarações do Presidente Piñera dizendo que 6.500 carabineiros não eram suficientes para controlar a situação em Santiago do Chile. Observei a solidariedade entre pessoas de diferentes escalões etários, diversas classes sociais e de muitos pontos do país, independentemente da sua condição profissional. Vi como se escrevia em bairros de classe média “Chile despertó” (o Chile despertou) e como havia revolta em relação a algumas instituições e contra a elite política.

Também pude ouvir como o povo chileno justificava esta sublevação massiva social e política. Diziam que eram décadas de abusos, de um sistema económico e social ultraliberal, em que o Estado social não existia. Ultimamente, os aumentos consecutivos nos transportes, a falta de acesso à saúde e o comprometimento da maioria das pensões em fundos financeiros que tinham tido problemas e por isso diminuído substancialmente o valor das mesmas, a par da implementação de um sistema de proteção social em que apenas o trabalhador desconta uma parte do seu vencimento, tinham levado à saturação da população.

Sem ouvir estes argumentos, o governo colocara na rua os carabineiros, militarizando as ruas e lembrando as feridas abertas pela ditadura de Pinochet. As manifestações massificavam-se e o governo alheio a tudo e a todos considerava que quem estava na rua a protestar tinha declarado guerra ao país. Não percebera nem o Presidente Piñera nem os seus conselheiros que a população não se calaria sem que a constituição, herdada de Augusto Pinochet, fosse alterada e que o presidente declarasse a sua demissão. Sem atingir estes objetivos, a população mantinha-se na rua e os confrontos com a polícia e as forças militarizadas aumentavam em tom e violência. Ainda me lembro de escutar jovens estudantes declararem que sem violência não se conseguiria nada, porque o poder político parecia surdo às suas reivindicações.

E era nos jovens que estava a chave do protesto. Tudo tinha começado com um protesto de jovens no metropolitano de Santiago do Chile, após o aumento de 30 e 40 pesos no preço diário do bilhete. Eram estes mesmos jovens que declaravam que os seus avós tinham tido medo, os pais tinham sido ameaçados, mas que eles nada tinham a perder, por isso iriam lutar pelos seus direitos. A juventude escrevia nas paredes as suas palavras de ordem: “as ruas podem ter os vossos nomes, mas são nossas”, “nós já não temos medo” e outras tantas. E isto fazia sentido a muitos chilenos, despojados das cidades e dos edifícios, primeiro pelo poder colonial, depois pela presença de empresas estrangeiras e, finalmente, pela apropriação financeira da sua classe dirigente.

Assim se justifica que Valparaíso, cujo centro está classificado pela UNESCO, não tenha um plano diretor municipal e esteja sujeito a pressões imobiliárias que têm obrigado os seus habitantes a deslocarem-se. O meio abandono em que se encontra a cidade é também fruto dessa falta de sentimento de pertença que a população tem, ao contrário das zonas não classificadas onde pulula vida.

Todos esses contrastes me fizeram pensar que o Chile me tinha mostrado todas as ambiguidades e conflitos que tinha lido nos meus autores da adolescência. E, falando com algumas pessoas, descobria aqui e ali gente que interpretava o que ali se passava de forma muito mais ampla. Chegaram a dizer-me “esta luta é de todos, imagina que este modelo social e económico se exporta ao resto do mundo”. Percebi, então, que os chilenos não se reviam na sua Constituição, não se sentiam representados pela sua classe política nem donos do seu país, das suas ruas, do seu espaço público. Tudo o que representasse essa falta de identificação tornou-se passível de ataque. O jornal “Mercúrio” em Valparaíso foi um dos primeiros alvos, dada a sua tradição ultraliberal e o apoio dado a Pinochet aquando do golpe de Estado.

É notório que os chilenos ainda não se conciliaram com o seu passado, nem perdoaram as consequências de uma ditadura sangrenta, apesar de simbolicamente durante do governo de Michele Bachelet se terem reabilitado algumas das personalidades da luta contra a ditadura. Quando perceberam que o seu passado se fundia com o seu presente e que as grandes manifestações estudantis de 2013 eram apenas um indicador do que viria a acontecer, declararam que o milagre chileno tinha desaparecido. E, então, às manifestações muito audíveis em todos os cantos das cidades, juntou-se o canto e a dança.

Manifestações que cantam e dançam, mesmo quando matam

Sem conseguirmos desenvolver as nossas atividades, o nosso grupo de investigação decidiu regressar aos países de origem. Alguns colegas de outros países latino-americanos nem tinham chegado a juntar-se a nós. Nesse dia em que regressámos, mais precisamente a 25 de outubro, realizava-se uma enorme manifestação em todas as cidades do Chile. Nessas manifestações cantou-se a música “El derecho de vivir en paz”. Tinha-se encontrado um hino para a revolta e evocava-se a canção que Víctor Jara, assassinado pela ditadura de Pinochet, dedicara ao povo do Vietname, então em guerra, evocando o seu direito à paz.

Recuperando esta música, os jovens e artistas que a tocaram reconheciam que a primeira fonte de conflito que necessita de reconciliação é a interna. Uma nova versão surgiu e o hino alastrou.

No meio de toda a violência, nestas manifestações houve tempo para cantar, dançar, evocar memórias, recuperar vozes tragicamente silenciadas e até para encontrar novos heróis. O “Negro Matapacos”, um cão que foi ícone das manifestações estudantis de 2013 ou o “Pikachu” que dançava durante as manifestações são símbolos da reivindicação de um novo pacto social. O Chile procura-se a si próprio, buscando a reconciliação que apenas virá com a mudança. Na semana passada, finalmente, os manifestantes receberam a notícia de que seria iniciado o processo de mudança constitucional. Mas a população ainda pede mais. Quer sentir-se representada, quer apropriar-se do seu país e das suas memórias. Irá conseguir?

A verdade é que o Chile não está sozinho nessa busca de representatividade e identidade. Olhemos em redor e vejamos como proliferam as manifestações, sem liderança definida e organizada, mas que demonstram como o exercício do poder se afastou da realidade que as comunidades vivem. A democracia não acabou, tal como também não se deu o fim da história. A democracia é um processo em construção. A democracia ateniense não é a democracia liberal, nem esta última será o modelo eterno de democracia. Cada regime democrático é condicionado pelo seu tempo e, se se mudam os tempos, mudam-se as vontades, como disse o poeta Luís de Camões e cantou o recentemente desaparecido José Mário Branco.

O Chile é apenas um dos casos em que a explosão social não pôde ser mais contida. Onde estarão os outros “Negro Matapacos”, “Pareman” y “Baila Pikachu”?