A actual sociedade, hiper-mediatizada, está sobrepovoada de imagens que já não são imagens de nada senão de si mesmas, que deixaram de ser uma representação da realidade para se substituírem à realidade — uma versão espectral, contida, empobrecida de realidade. Como se os nossos olhos não aguentassem o brilho das coisas dadas na sua mais crua realidade, sem mediação. Paradoxalmente, demasiada imagem pode significar nenhuma imagem.

Jacques Rancière colocou bem os dois lados do problema ao perguntar: “De que se está a falar e exactamente o que se diz quando se afirma que daqui em diante já não existe realidade mas unicamente imagens, ou, inversamente, que já não há imagens mas tão-só uma realidade que incessantemente se representa a si própria?” (“O destino das imagens”, 2003). Neste sobrepovoamento de imagens, estas tornam-se numa espécie de filtro anestésico da realidade, e assim realidade e imagem perdem-se ambas. A realidade sem espessura e sem mistério, um fantasma de realidade domesticada. E as imagens tornadas realidade em vez de imagens de realidades que não elas. A realidade passou a conviver com outras realidades que são menos realidade, mas que ao mesmo tempo estão omnipresentes. Assim se diz que vivemos num mundo de imagens.

O movimento de migração para este mundo de imagens não é diferente do movimento de fuga de que falava Hannah Arendt com perplexidade, há 60 anos, em “A Condição Humana”Aquando do lançamento do satélite Sputnik (1957), a imprensa festejava o acontecimento em parangonas como esta: “passo para libertar o homem da sua prisão na Terra”.

A fuga para um mundo de imagens é apenas mais uma das formas de apresentação desta fuga da realidade ou da Terra. Como a nossa desmaterialização e a substituição do real pelo virtual, ou do real pelo seu simulacro, de que falavam Paul Virilio e Jean Baudrillard. Todas elas são fugas daquilo que não se converte ao domínio humano e que não advenha da sua produção artificial. Era precisamente este o sentido que Heidegger dava à palavra ‘Terra’ em “A Origem da Obra de Arte”: aquilo que nunca se desvela no desvelamento que trazemos ao mundo.

Esta conversão do mundo da vida em mundo de imagens atinge não apenas a realidade dos objectos com que nos relacionamos mas também os próprios sujeitos que nos perspectivamos e fazemos ser. E de novo encontramos um paradoxo. O velho drama das figuras públicas reféns de uma ditadura da imagem, imagem que sabem dolorosamente não ser elas, inverteu-se e, num conformismo a que não conseguimos fugir, cada um se força não apenas a ter uma imagem pública, mas a ser essa mesma imagem, sem intervalo. É isto que nos oferece uma existência quotidiana cada vez mais migrada para o online, os social media, sejam redes sociais, jogos sociais, ou outros lugares virtuais. Podemos então formular uma pergunta semelhante à de Rancière: de que falamos exactamente quando afirmamos já não conseguir existir sem ser no modo de figuras públicas ou, inversamente, o que é que resta do significado de ter uma imagem?

No teatro antigo, à máscara com que se apresentava o actor chamava-se persona, e esta máscara é bem expressão da importância de distinguir a pessoa que se apresenta publicamente diante dos outros do homem ou da mulher que estão por detrás dela. É esta persona que se diferenciava como sujeito público que agora, no mundo das imagens contemporâneo, se vai rarefazendo.

A rarefacção da diferença entre papéis públicos e vida privada tem consequências, como por exemplo uma vontade reactiva (de backlash), que depressa se vai convertendo em exigência política, de estabelecer de novo papéis sociais diferenciados para homens e mulheres, de novo masculinidade e feminilidade clara e distintamente afirmadas e consignadas na divisão da vida social, logo desde que se é criança, na diferenciação das roupas que se vestem, das cores, das actividades que evocam os seus brinquedos, continuando na identificação das casas de banho ou nas saias e calças que os adultos podem querer, ou não, continuar a vestir. Os que não alinham com esta exigência de diferenciação são acusados de serem agentes da ideologia de género, agentes da confusão de orientações sexuais.

O que vale para os géneros vale para as minorias ou para as afirmações identitárias que se baseiam na justa exigência de inclusão no círculo dos que são tomados como iguais. Estas tornam-se inimigas não por serem minorias, mas por não quererem ser minorias submetidas a um papel social atribuído, por quererem o reconhecimento de que são dignas do mesmo respeito do que todos os outros.

É preciso, portanto, relacionar estas tendências — que se exacerbam num contexto de populismo e de afronta a qualquer política de acção afirmativa — com a transformação por que a esfera pública está a passar neste nosso mundo em que todos somos imagens públicas mas em que se perdeu o sentido da imagem pública. O ataque populista à esfera pública que hoje assombra as democracias, e a vontade de imposição de papéis sociais rígidos, são inseparáveis deste fenómeno global de banalização da imagem. As imagens deixam de significar ou representar outra coisa para se acrescentarem à realidade, como espectros de realidade. Que é o que vamos todos tendendo a ser, empurrados pelos estímulos que a sociedade vai dando em função da nossa conformação ao formato imagem.

Nem tudo é mau na imagem sem outro. Rancière lembrava um contraste feito por Régis Debray entre a imagem televisiva enquanto imagem sem outro, puro visual auto-referencial, em contraste com a imagem cinematográfica que é imagem de outra coisa que não ela mesma, usada não para acrescentar realidade mas fazer sentido da realidade. A televisão tornou-se uma presença, ou uma companhia. A televisão dos programas da manhã, a das pessoas idosas e desacompanhadas numa sociedade cada vez mais ocupada, foi isso: uma realidade espectral, realidade-menos, mas que era, apesar de tudo mais realidade, ou quase a única, onde não havia realidade.

Mas essa era uma esfera privada, debatendo-se com a privação de mundo e compensando o desligamento do abandono com o hábito diário das mesmas imagens e vozes. Agora esta forma tornou-se o modelo da esfera pública. Porque a forma da comunicação nas redes sociais é privada e não pública, dirige-se a auditórios de indivíduos e não a um auditório de cidadãos. Só que partir do momento em que a tecnologia conseguiu eliminar o obstáculo de a comunicação privada ser uma comunicação de massas, ocorre uma diferença crucial no modo como a mensagem política chega a cada um. Não por uma emissão televisiva ou de rádio, mas por alguém seu conhecido, da sua rede de relações, fazendo sucumbir todas as boas distâncias que fazem a urbanidade, a cidadania e a razão pública. Tal como sucumbiu o intervalo entre a imagem e de quem a imagem é imagem.

Na esfera pública, o inimigo do discurso identitário emancipatório, do discurso que procura reconhecimento e igual dignidade, é cada vez mais outro discurso identitário, de sinal contrário, assente no desprezo pela diferença entre a imagem e aquilo de que a imagem é imagem, pela diferença entre as pessoas públicas e a gente que as encarna individual e colectivamente. Ou seja, o populismo reinante que uma sociedade hiper-mediatizada promove.

Mas não é só isto. Uma profunda ambivalência corre sob o ataque ao discurso identitário emancipatório, diante da qual fica uma questão que não pode deixar de ser respondida: quais os limites da legitimidade do discurso identitário emancipatório? Assumindo que este se bate pelo reconhecimento de igual dignidade e de inclusão plena, não apenas de indivíduos mas das suas comunidades, as razões públicas do seu identitarismo devem ser sempre negativas, ou seja devem partir de um não reconhecimento, de uma desigual dignidade ou de uma personalidade não-plena.

Razões identitárias negativas movidas por razões positivas de igual dignidade e igualdade de oportunidades, ou seja, por um desejo de universalidade alargada, que não cobre apenas indivíduos, mas também as comunidades em que encontram sentido. Pensando, por exemplo, em Joacine Katar Moreira, deputada eleita do Livre, trazer para a sua persona pública o que ela tem de mulher, de negra, de gaga não é apenas uma questão pessoal. Justifica-se politicamente para combater a disposição social que assume na mulher, negra, gaga – como uma equivalência tácita! – não ser pessoa pública plena.

Desfazer essa falsa equivalência é um gesto político de crítica e transformação social imprescindível para quem se reveja nos valores da emancipação. E dentro destes limites, o lugar de fala é um lugar importante, mas não exclusivo, de acção política. A inclusão dos excluídos será uma farsa enquanto os excluídos não puderem de facto falar por si. Se não for tornado um instrumento de exclusão dos incluídos, o que não raro acontece – infelizmente –, o lugar de fala serve muito bem a luta social e política pela constituição da persona pública e não o seu contrário.

Mas se um discurso identitário só o deve ser negativamente – essa é a marca de água do seu valor e fundamento emancipatório, e também o seu limite –, sucede exatamente o inverso com os discursos críticos pretensamente não identitários que se reclamam da emancipação. Se o primeiro é na superfície identitário porque, na profundidade, persegue politicamente o que pode ser universal, a dignidade e a igualdade de oportunidades, estes só superficialmente são universais, porque afirmando abstractamente os mesmos valores negam, contudo, os meios da sua realização além dos que dizem respeito à sua posição particular. Excluem a relevância emancipatória de ser mulher, ser negra, ser minoria porque na condição de homem, branco, ocidental, não se conhece de facto outra exclusão além da de classe.

Ironicamente, incorrem no mesmo erro e também na mesma defesa de privilégio que os mais empedernidos liberais que contestam na superfície da luta política. Basta-lhes o reconhecimento da classe como basta aos arautos do liberalismo o reconhecimento do igual tratamento diante da lei. Mas não basta. Uma mulher, uma negra, sabe que não basta. Uma minoria sabe que não basta. E ninguém sabe a priori o que baste. Só a realidade vivida por quem a vive sabe.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.