Temos assistido, desde o início da pandemia, a uma avalanche de especulações sobre o futuro e às mais abstrusas odes à ausência do factor humano no mundo. É sempre um exercício interessante fazer de uma adversidade uma oportunidade. Torna-se menos interessante se se limita a uma mera projecção da nossa vontade, do nosso ideário pessoal.

À semelhança do que tem acontecido um pouco por todo o mundo, dois destacados ambientalistas portugueses vieram na semana passada congratular-se com os benefícios da pandemia para o planeta. Basicamente, as pessoas presas em casa, limitadas na sua vida, tolhidas pelo medo de um inimigo invisível, ameaçadas por uma peste descontrolada, é o melhor dos quadros para estes ambientalistas.

Nada se compara à descida no nível do CO2, dos plásticos e dos adubos, ainda que o preço a pagar seja uma pandemia, ainda que o resultado directo seja a morte e o indirecto o desemprego e a fome. Para esta gente, o homem está claramente a mais no planeta. Sonham com um homem primitivo, herbívoro, repetitivo e que morra no lugar onde nasceu, sem perturbar os ciclos da natureza. Sim, esta fase permitiu que saíssem do armário os legionários do ecofascismo. Se há mudança que espero que ocorra no final é, precisamente, o regresso ao armário da maioria destes profetas radicais.

Depois, surgem todos os insatisfeitos da vida, anunciando que o novo mundo pós-Covid suprirá todas as razões da sua insatisfação e má consciência. Toda a gente poluirá menos, os netos visitarão frequentemente os avós, acabará o flagelo dos sem-abrigo, a produção será mais sustentável e os salários mais justos, a reindustrialização da Europa será uma realidade a curto prazo e as diferentes interdependências ditarão a nova ordem mundial pós-Covid.

É verdade que ser um conservador não traz grande excitação, nem particulares epifanias nestes tempos de profunda crise. Para mim, a ideia de um regresso à normalidade pré-Covid é uma perspectiva suficientemente satisfatória. Vivíamos num mundo imperfeito, como sempre será o mundo, mas era um mundo conhecido, e a exigência era irmos colectiva e individualmente agindo para o melhorar de forma sustentável e racional.

Com todos os defeitos que conhecemos, este mundo, para a maioria da população estava melhor do que o mundo do passado. Aliás, é este mesmo mundo que permite um número inédito de grupos de investigação, a nível global, interligados, a combater a pandemia num tempo record, nunca antes imaginado.

Perante estes anseios, e espicaçado pela magnífica crónica do Michel Houellebecq desta semana na France Inter, dei por mim a fazer as perguntas mais simples. Obviamente que, fechados em casa, o automóvel se tornou um bem dispensável. Quantos de nós, no regresso à normalidade, estaremos disponíveis para deixar o automóvel de lado e despender de mais duas horas por dia para o trajecto casa-trabalho?

Quantos de nós abdicaremos de viajar de avião assim que seja seguro? Quantos estaremos com remorsos mortificantes pelo CO2 produzido por aquele A380 que nos levou a Pequim para conhecer a Grande Muralha da China, ou a Los Angeles para fazer aquela “road trip” até ao Grand Canyon? Quantas empresas estão dispostas a abdicar da vitalidade e da dinâmica do comércio global, com as deslocações e meios que isso implica? Quantos estão dispostos a renunciar ao belo chuleton e às almondegas suculentas da avó? Quem está disposto a deixar de sair, de beber, de socializar com o consumo agregado?

Quem está realmente em condições de trocar o progresso científico, as vacinas, a medicação de ponta, a segurança alimentar, por um punhado de proclamações que nos levam de volta a um estilo de vida em que a esperança média de permanência por cá era cerca de metade da actual? Quem está disposto a largar micro-ondas, máquinas de lavar, robots de cozinha, máquinas de barbear, calculadoras, telemóveis, computadores e televisores, para viver de acordo com quem decidiu que a casa é mais importante do que quem nela habita?

Regressaremos à normalidade, logo que seja possível, e em força. E ainda bem. Poderemos voltar a abraçar os amigos, partilhar da companhia dos mais velhos sem medo, estar à volta de uma mesa com vinho, boa companhia e a comida que mais apreciamos. Iremos viajar como sempre, ou mais ainda, conhecer sítios magníficos e gente fantástica. Manter-se-á a miscigenação social, o multiculturalismo e o mundo continuará a encolher.

Os nossos carros serão mais limpos, mas vamos continuar a usá-los para estar perto do que interessa e ficar com mais tempo para o que é importante. Viveremos em casas bem aquecidas, teremos medicamentos que nos ajudem a prolongar a vida com qualidade e a prevenir grandes epidemias como a actual. Exigiremos comida segura, espaços limpos e higiene geral, antes de pensar nos efeitos colaterais de antibióticos e detergentes. Não prescindiremos de viver e não estamos seduzidos com a ideia de morrer para melhorar o índice da qualidade do ar.

O mundo vem fazendo progressos notórios em termos de sustentabilidade. É por demais importante uma ecologia ao serviço do homem, que preserve o planeta para as gerações vindouras, e não o contrário. O ecofascismo, para além de ser uma perversão ideológica, é a antítese do humano. Estamos cá, e queremos continuar com gosto.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.