Também acha que as tarifas comerciais de Donald Trump são mais produto do seu conhecido narcisismo do que resultado de uma política racional? Esqueça. Existe pensamento por trás de toda esta trapalhada, e não é um pensamento qualquer: é o tipo de pensamento academicamente válido que confere a quem o promove a certeza de validação. O assunto é sério.

Albert Hirschman nasceu em Berlim em 1915 e teve uma vida estimulante que terminou apenas em 2012 e que, em parte, pode ser vista na mini série da Netflix “Transatlântico”. Se hoje lhe dissessem que a política de tarifas de Trump se inspira nas suas ideias, ele, que combateu os nazis e pegou em armas contra os falangistas espanhóis, despentearia certamente o seu cabelo impecavelmente puxado para trás. Mas inspira.

Inspira sobretudo Stephen Miran, economista americano que publicou em novembro de 2024 um guia para reestruturar o sistema de comércio global. Stephen Miran foi nomeado em março presidente do Comité de Conselheiros Económicos da casa Branca, a agência que “dirige” o pensamento económico do presidente americano, e a influência das suas ideias fez-se logo sentir.

Nesse pensamento, a América está a aplicar tarifas comerciais através de uma fórmula simples, mas não necessariamente correta, baseada no défice comercial dos Estados Unidos com cada país. Divide-o primeiro pelo total das importações com esse país e, em seguida, divide por dois. Já está.

Adicionalmente, assegura esta doutrina, a guerra tarifária não provocará inflação, na medida em que desvaloriza a moeda dos países afetados pelas tarifas reequilibrando, desse modo, o valor de compra dos produtos importados. Anda tudo a tentar perceber a matemática da coisa, mas o que fará sentido é recuperar o pensamento de Hirschman, criticado entre os economistas, curiosamente, por não fazer contas. O puzzle é interessante.

Guerras comerciais

No livro que publicou em 1945, “National Power and the Structure of Foreign Trade”, o economista alemão explora o princípio de que as guerras comerciais, das quais as tarifas são importante munição, podem ser usadas como instrumento de influência política, primeiro, e como vantagens económicas, depois.

A primeira é bem simples: criando relações de força no comércio internacional, é possível influenciar e dirigir as ações e decisões políticas dos estados subjugados. Ele aponta vários exemplos, entre os quais a conhecida anexação da Áustria pela Alemanha, em 1938, explicando que esse momento foi antecedido de anos de políticas comerciais agressivas que deixaram a Áustria completamente de rastos.

Nos tempos modernos, muitos apontam a dependência europeia do gás russo, por exemplo, como uma ilustração perfeita do que Hirschman pretendia sublinhar. Outro bom exemplo, indicam, é a nova Rota da Seda, que não é mais do que uma agressiva política comercial e de investimento chinesa para tentar forjar essas dependências e relações que, em seguida, sustentam a crescente influência política.

Fica mais claro por isso o seguinte: as tarifas comerciais de Trump são uma estratégia de dominação do seu país sobre os demais, de modo que estes, subjugados, se alinhem com os interesses políticos e ideológicos americanos.

É verdade: muitos comentadores têm procurado lembrar que as guerras comerciais, nomeadamente através da imposição de tarifas, são um absurdo económico que funcionará como um imposto sobre os americanos, gerando inflação massiva e uma quase certa recessão. Talvez.

Mas Stephen Miran diz que não: estas agressivas políticas de tarifas comerciais não vão provocar inflação e protegem a força do dólar, na medida em que provocam a desvalorização da moeda dos países afetados. Essa desvalorização tem dois efeitos positivos, explica Miran: ela reduz o custo das importações, na medida em que são compradas a uma moeda desvalorizada, e fortalece o dólar, preservando-o como moeda forte.

Miran gosta de citar o exemplo das tarifas impostas à China em 2018 e 2019: durante este período, os americanos aumentaram as tarifas em 17,9 pontos percentuais. Consequência? A moeda chinesa desvalorizou 13,7% face ao dólar, o que financiou mais de três quartos do aumento da tarifa: o impacto da tarifa para o bolso americano foi, na realidade de cerca de 4%.

Defender a hegemonia

No “Financial Times” de sábado, a cronista Gillian Tett lembrava o trabalho dos economistas Christopher Clayton, Matteo Maggiori e Jesse Schreger na geoeconomia, trabalho a que, como aconteceu com Hirschman, ninguém deu particular importância até Trump iniciar a guerra das tarifas.

Eles resumem bem o que este artigo procura explicar com algum detalhe: as tarifas de Trump são, essencialmente, uma tentativa de desafiar outro país hegemónico, a China, procurando simultaneamente defender a hegemonia que a América ainda detém, em particular a que decorre de preservar o dólar como cimento forte do sistema financeiro global.

Entendido assim, percebe-se melhor por que razão o foco principal da guerra de tarifas de Trump tem a China como alvo prioritário: é a China que esta batalha tarifária visa enfraquecer, numa lógica muito à la Hirschman de que as guerras comerciais podem destruir países com a mesma violência que uma guerra convencional, sem que isso, pelo caminho, gere inflação ou recessão no país que ataca.

Recuperar Albert Hirschman, portanto, não serve apenas para tentar perceber um pouco melhor de onde vem toda esta animação da administração Trump. É útil igualmente para os países europeus perceberem o que se está a passar e poderem decidir melhor sobre como responder.

Repararam na resposta rápida de Pedro Sánchez, o presidente do Governo espanhol? Isso: uma viagem ao Sudeste asiático, com paragens na China e no Vietname. É espantoso que tenha sido o primeiro a fazê-lo quando, lendo Hirschman, parece tão evidente que um bully como Trump precisa de respostas de outro bully.

Claro: a Europa não deve permitir, como Hirschman avisa, que se criem dependências com a China. Mas responder a Trump com a possibilidade de uma aliança com o país que ele quer combater é endireitar o tabuleiro: se a China vender mais à Europa é provável que a sua moeda não desvalorize e que o euro se reforce, minando a estratégia de Trump em segurar o valor do dólar. Guerra é guerra.

Talvez isto torne mais evidente por que razão, esta quarta-feira, Trump decretou uma pausa de 90 dias na imposição de tarifas a todos os países, menos à China. É ela o alvo. Terá sido também reação à ágil resposta de Sánchez?

É verdade: não é difícil supor que Trump não faz ideia de quem é Hirschman e que, na sua voragem, esteja a ultrapassar velozmente toda a “racionalidade” económica dos seus conselheiros. Sabe-se lá.

O que fica de tudo isto, porém, será o velho princípio de que conhecer a História e perceber as motivações e os fundamentos de quem nos ataca é eficaz. Estou hoje mais convencido que Trump não resistirá às eleições para o Senado e para a Câmara dos representantes agendadas para novembro de 2026. Até lá, porém, é melhor perceber bem o que está em causa do que andar por aí a disparar em todas as direções.