O país assistiu incrédulo ao relatório da EY sobre os créditos concedidos pela CGD. Mesmo sabendo-se que a actividade bancária envolve necessariamente riscos, os números resultantes das imparidades da CGD são aterradores.

O estudo inerente ao risco de cada operação de crédito é ainda mais aprofundado quando os montantes são elevados. É comum até muitos bancos terem uma política de redução de risco e nem sequer concederem créditos acima de determinados montantes, a partir dos quais passa a ser necessária a constituição dum sindicato bancário. É, pois, extraordinariamente difícil de entender a concessão de crédito de elevados montantes sem garantias reais ou sem garantias que não protejam devidamente o credor que, neste caso, é o Estado, ou seja, todos nós.

Este caso só é notícia porque, aparentemente, os créditos auditados pela EY foram concedidos sem as devidas garantias e hoje a CGD nada tem para executar ou o que existe não cobre quase nada.

O normal, no caso de incumprimento, é o credor executar as garantias e encerrar, desta forma, a questão. Sendo o Estado o accionista da CGD, ainda mais difícil é compreender a aludida concessão de crédito. Quando se esperava ponderação, parcimónia e uma cuidadosa análise de risco, afinal descobre-se que muitos dos créditos foram concedidos contra a decisão técnica da Direcção de Risco.

Como foi possível? Com que propósito as administrações da CGD foram contra a Direcção de Risco? Convém recordar que a CGD não é um banco incompetente, dado que sempre foi reconhecida, no meio, como um banco conservador e prudente.

Recorde-se que durante os anos em que a Euribor superou os 4%, muitos dos clientes particulares da CGD entraram em incumprimento e a CGD, via DRC (Direcção de Recuperação de Crédito) esmagou-os, alterando (duplicando, triplicando ou pior) os spreads aquando da inevitável renegociação, dado que o passo seguinte seria a execução. Não se percebe, portanto, onde está a acção da DRC nos casos descritos pela auditoria da EY. O que é que foi feito, durante anos, para recuperar estes créditos ruinosos, para além de mansidão e letargia?

Sendo a CGD um banco público, todos os portugueses que pagam impostos têm algo a ver com o assunto. Logo, têm o direito de fazer perguntas. Quem paga, seja impostos ou outra coisa qualquer, tem o direito de questionar e de se indignar com a utilização desses recursos financeiros. O dinheiro público, seja do IVA, do IRC ou devido a quaisquer outros impostos ou fontes, não conhece divisões ou circunscrições. É tudo dinheiro público seja qual for a fonte.

Há, actualmente, um enorme rigor nas Finanças Públicas visível nas cativações e na inamovível posição, do Governo, de travagem a todo e qualquer aumento da despesa, seja com aumentos salariais da Função Pública, seja com a redução de impostos que continuam em máximos desde a troika. Mais uma vez, este rigor orçamental não está presente no que diz respeito à CGD.

Os portugueses não toleram mais esta bipolarização de comportamentos. Nuns casos, tudo é controlado e há um upper bound orçamental que não pode ser atingido. Noutras situações, o mesmo Estado apresenta-se bipolar e com um laxismo indescritível deixa esvair, tranquilamente, milhares de milhões de euros, como acontece no caso em apreço. Já percebemos que o tema é incómodo.

Temos, portanto, um Estado forte e implacável para as facturas das cabeleireiras e das oficinas de automóveis ou para aumentos salariais da Função Pública e um Estado cobarde no caso dos grandes créditos da CGD. Registam-se, tranquilamente, os incumprimentos e as subsequentes imparidades, o contribuinte paga e a fórmula repete-se ad nauseam.

O alcance deste problema é ainda mais complexo, dado que assistimos aqui ao aparecimento de “neoplasias” que vão progressivamente “metastizando” o Estado. Fica a ideia que tudo funciona até um determinado montante e a partir daí o Estado acobarda-se e deixa escapar milhares de milhões de euros. Não se percebe e muito menos se compreende o estado bipolar do Estado perante o mesmíssimo dinheiro público.

A Comissão Parlamentar de Inquérito à CGD tem, pois, um papel crucial no apuramento de responsabilidades, mas tal não chega. Hoje, a verdade já não chega. É preciso chegar à consequência. É imprescindível chegar à consequência. Há que punir todos os responsáveis e recuperar tudo o que for possível. Afinal, os portugueses já sabem o que acontece a quem ataca um banco por fora. E a quem ataca um banco, por dentro, acontece o quê?

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.