O circo começou mal. O ministro das Finanças e candidato a exílio dourado em Bruxelas, Mário Centeno, apresentou o Orçamento do Estado para 2019 e as medidas nele previstas. Como seria de esperar, não houve partido que não usasse a obrigação de comentar o Orçamento para aproveitar a oportunidade de se posicionar retoricamente para a campanha eleitoral que se avizinha. Como também não será surpresa para ninguém, nada do que disseram mereceu crédito ou atenção.

No entanto, fora do triste espectáculo do “debate” partidário, alguns comentários ao conteúdo do Orçamento permitem compreender um pouco melhor o que este revela acerca da natureza do Governo de António Costa e, mais importante ainda, do Estado português.

Numa entrevista para o número especial deste jornal dedicado ao Orçamento, por exemplo, Daniel Bessa notava como medidas como o pagamento “mais lento” do IMI ou “o não englobar as horas extraordinárias e o trabalho aos domingos e feriados para efeitos de retenção por conta” fazem com que “as pessoas” possam “ser levadas a pensar que não vão pagar mais” impostos, “mas vão, quando o englobamento é feito no fim do ano”, “pequenas coisas” que criam a ilusão de que se está a receber mais dinheiro quando, ao chegar a hora do fisco vir cobrar, o contrário se verifica.

No Observador, por sua vez, José Manuel Fernandes centrou a sua atenção na proposta de descida do valor máximo das propinas universitárias. Considerando-a uma medida emblemática da forma como o Governo de António Costa opera (“um aumento constante dos encargos do Estado, projectando encargos futuros mais pesados, um fardo que terá de ser carregado em futuros orçamentos (e futuras gerações) em anos porventura menos favoráveis do que foram estes últimos”), José Manuel Fernandes classificou-a de “socialmente regressiva, pois trata famílias pobres e famílias ricas da mesma forma”, o que favorece as primeiras “já que para as com mais dificuldades financeiras já existem sistemas de bolsas”.

Também no Observador, Mário Amorim Lopes escreveu um longo ensaio em que analisava as propostas orçamentais para o sector da Saúde. Amorim Lopes notou a subida da despesa no SNS prevista pelo Orçamento para 2019, mas também o facto de esta se verificar essencialmente nos gastos com o pessoal, em virtude (se é que a palavra poderia ser adequada no contexto) da necessidade de contratar novos funcionários depois da redução do horário de trabalho para 35 horas e do descongelamento das carreiras dos profissionais do sector. Aliás, também Daniel Bessa, na entrevista que atrás referi, apontava na mesma direcção: “o Orçamento aproveita todos os benefícios do crescimento para privilegiar salários e pensões”.

Visto no seu conjunto, e prestando atenção ao que Bessa, Fernandes e Lopes nele criticam, o Orçamento para o próximo ano mostra bem como Portugal, excepto no discurso dos partidos que se dizem “de esquerda”, não tem um “Estado Social”, tem um “Estado Cacique”. Um Estado social a sério deveria concentrar-se em desempenhar as funções que mais ninguém pode prestar, e em garantir uma rede de segurança a quem, por si só, não tenha os meios suficientes para aceder a bens essenciais como os cuidados de saúde, ou a uma educação, ou não tenha sequer um rendimento necessário a uma vida minimamente digna.

Mas em Portugal, o Estado – e os partidos que o ocupam – parece ter como função essencial (por vezes até parece ser a sua função exclusiva) usar o seu vasto poder para extrair recursos à sociedade em geral e encaminhá-los para um selecto mas vasto conjunto de grupos, de forma a, por sua vez, encaminhar os seus membros para as cabines de voto e a colocar a sua cruzinha no quadrado da força política no poder, seja no poder em Belém, em São Bento ou nas “Praças do Município” e equivalentes pelo país fora.

Esta realidade seria grave com qualquer governo (e, infelizmente, é assim com todos os governos) mas é particularmente grave (porque particularmente hipócrita) vinda de um governo de um partido, apoiado por outros dois, que gostam de se dizer “de esquerda” e que por isso se acham inerentemente imbuídos de generosidade e “sensibilidade social”. Se dúvidas houvesse, o Orçamento para 2019 mostra como a verdade não poderia ser mais diferente.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.