Escrevi há semanas que o Reino Unido padecia de um declínio esclerótico institucional e político. Uma sucessão de episódios nos últimos anos tem posto em causa a reconhecida qualidade quer do civil service quer, sobretudo, dos políticos britânicos, o que terá merecido, inclusivamente, segundo se especula, reparos da habitualmente recatada Rainha Isabel II, segundo noticiou o “The Times”.

Porém, o estado da saúde democrática da Velha Albion deteriorou-se com a prorrogação do Parlamento, classificada até há pouco por vários ministros do governo de Sua Majestade, que agora a decreta como aberrante e atentatória das liberdades inglesas.

De facto, nos tempos que correm, quando pensamos ter-se chegado ao fundo do poço, cedo nos apercebemos que fomos iludidos pela óptica, e que a sua profundidade é maior, sendo possível descer um pouco mais. E o Reino Unido acabou de atingir um novo patamar inferior.

Ao decidir-se pela suspensão do Parlamento por cinco decisivas semanas, Boris Johnson passa um atestado de estupidez aos britânicos, assinado pela soberana, forçada pelo costume, e que desta forma se vê arrastada para a desconfortável posição de cúmplice involuntária do golpe de teatro do seu primeiro-ministro.

A convicção da estupidez dos seus compatriotas está patente desde logo na promessa de distribuir incontáveis milhões por diversos sectores, milhões esses que ninguém sabe ainda ao certo de onde vêm nem se estarão disponíveis, atendendo à incerteza que paira sobre o Reino Unido por causa do Brexit, cujas possíveis consequências poderão comprometer a súbita liberalidade governamental.

Mas a sua crença na estupidez dos britânicos é sobretudo evidenciada no facto de tentar convencê-los de que o verdadeiro motivo da prorrogação não é o desejo de impedir o Parlamento de se pronunciar e decidir sobre a forma que o Brexit deve assumir, mas apenas devida à abertura de uma nova sessão legislativa, com a pompa e circunstância costumadas, no próximo dia 14 de Outubro, na qual se propõe apresentar o seu ambicioso programa de governo.

Com este truque barato, Johnson consegue a histórica proeza de atacar simultaneamente dois orgãos de soberania: a Coroa e o Parlamento, o que, para quem defendeu o Brexit como condição de restauração da plena soberania das instituições nacionais, coarctada pelas gentes de Bruxelas, é de uma coerência notável.

O Parlamento fica, assim, subitamente limitado por um calendário apertado para deliberar sobre uma muito relevante matéria, decisiva para o futuro do país, o que resulta, na prática, na paralisia de uma instituição soberana que é a mais representativa da nação. Em suma, em nome do suposto respeito pela vontade de 52% do povo, anula-se do processo político uma instituição que representa a quase totalidade do mesmo.

Já no que respeita à Coroa, fica vinculada a uma anomalia política que, como refere o líder da oposição, se vê na contingência de propiciar uma saída da União Europeia sem acordo contra a vontade da maioria dos representantes legítimos dos seus súbditos.

É sabido que o narcísico Johnson ambiciona há muito inscrever o seu nome nos anais da História pátria. Ao que tudo indica, alcançará o objectivo. Da pior forma e pelos piores motivos, porém.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.