Todos nós aprendemos muito cedo nas nossas vidas que a matéria tem três estados: sólido, líquido e gasoso. Mais tarde, percebemos que afinal existem mais estados da matéria, nomeadamente o plasma e o condensado de Bose-Einstein, este também conhecido como luz líquida.

Em 1821, o Reino Unido estabeleceu o padrão-ouro, que foi o sistema monetário vigente entre o século XIX e a Primeira Guerra Mundial. Portugal foi o primeiro país da Europa Continental a aderir a este sistema, acabando por permanecer durante 37 anos, excedendo até a permanência no padrão-ouro do próprio Reino Unido. Somente após os acordos de Bretton Woods, em 1944, o padrão-ouro seria restabelecido, desta vez com base no dólar (1 USD = 35g ouro).

A deterioração da economia americana a partir da segunda metade da década de 60 do século XX, nomeadamente por via dos elevados deficits orçamentais e da necessidade de emitir moeda para os financiar, ao mesmo tempo que os restantes signatários do acordo eram também obrigados a emitir moeda para manter a respetiva paridade, acelerou o fim do sistema.

A significativa desvalorização do dólar em 1971, levou os outros países signatários do acordo, nomeadamente a Alemanha e a França, a trocarem em larga escala as suas reservas monetárias por ouro. Sem stock para responder a estas exigências, a administração Nixon decidiu terminar a convertibilidade do dólar em ouro.

O dinheiro deixou de ter uma representatividade sólida e uma contrapartida tangível. Assim, e depois do estado sólido, a circunstância atual de pandemia parece estar a levar o dinheiro a mudar de estado, tornando-se numa espécie de condensado de Bose-Einstein.

Assiste-se, pois, a uma redução significativa dos pagamentos em moeda física, notas e moedas. A possibilidade de o vírus permanecer em objetos durante algum tempo, o longo período de confinamento e de encerramento do comércio, a par das recomendações da DGS e dos bancos para a utilização de outros meios de pagamento, funcionaram como aceleradores da mudança.

A alteração do valor máximo para pagamentos contactless foi igualmente um fator relevante neste processo de desmaterialização do dinheiro, mas principalmente a consciencialização de que os pagamentos contactless (com cartão ou usando wallets digitais) e online são seguros, práticos e simples. Proporcionam rastreabilidade e controlo e podem ser efetuados a qualquer hora e em qualquer lugar.

Neste contexto assiste-se a uma redução significativa do volume de dinheiro em circulação, com impactos transversais: os ATM e os balcões dos bancos não necessitam de ser abastecidos pelas empresas de transporte de valores (ETV) com a frequência do passado; as tesourarias dos bancos e do Banco de Portugal armazenam um stock anormalmente elevado de notas e moedas, assim como os “colchões” de muitos portugueses, que se apressaram a levantar quantias significativas com receio que o sistema colapsasse.

O aumento exponencial da utilização dos canais digitais dos bancos e os pagamentos embebidos na experiência de consumo nos marketplaces digitais, potenciados pela nova Diretiva dos Serviços de Pagamento (DSP2) funcionaram como rampa de lançamento desta nova realidade: o dinheiro está a mudar de estado, de sólido para condensado. Condensado em cartões, tokens de pagamento, wallets digitais.

Esta pandemia constitui, provavelmente, o princípio do fim do dinheiro físico. Passamos desta forma a um novo padrão. Em vez de ouro, o dinheiro físico funcionará como o novo padrão do sistema monetário, sólido, mas com paridade condensada.