Adam Smith estaria longe de imaginar que à sua constatação, no final do século XVIII, de que o mercado livre é o motor do progresso teria de se acrescentar, em pleno século XXI, que é também um travão da liberdade e do Estado de Direito. Porquê? Porque sob a bandeira da defesa do mercado livre – sem dúvida um estruturante fator de competitividade e de proteção do bem-estar do consumidor – várias barreiras e limites, antes julgados intransponíveis, correm o risco sério de ser ultrapassados.

A chamada Diretiva ECN+, em fase de transposição para o ordenamento jurídico interno, prevê um conjunto de regras que visam reforçar poderes de investigação das autoridades de concorrência europeias, garantir a sua independência, clarificar ou reforçar a moldura sancionatória por infrações às regras de concorrência e harmonizar outros aspetos nas legislações nacionais de concorrência dos Estados Membros.

Em Portugal, onde as infrações às normas de concorrência não têm enquadramento criminal, mas apenas contraordenacional, a transposição da Diretiva suscita desafiantes questões de compatibilidade com a Constituição que exigirão um equilíbrio, no mínimo, muito delicado. Basta, por exemplo, pensar na ingerência nas comunicações que a Diretiva pretende permitir às autoridades da concorrência no âmbito de investigações.

Embora se preveja a possibilidade de buscas em telemóveis, smartphones, mensagens instantâneas, tablets, computadores pessoais, servidores, entre outros, no ordenamento jurídico nacional diversos tipos de crime não são considerados suficientemente graves para permitir o recurso a meios de prova que comprimem direitos tão importantes como a privacidade das comunicações.

Acresce que o Anteprojeto de transposição altera ainda um conjunto de outras matérias, quase sempre no sentido de limitar ao mínimo os direitos das empresas que tenham o infortúnio de ser investigadas por suspeitas de participação numa prática restritiva de concorrência. É o que sucede com a proteção da informação apreendida em buscas que contenha segredos de negócio, já que sobre a empresa passa a recair um ónus de justificação que equivalerá muitas vezes à recusa da proteção do segredo.

O mesmo se diga da circunstância de se pretender acabar de vez com a possibilidade de os recursos de decisões interlocutórias da Autoridade da Concorrência terem efeito suspensivo, o que equivale a tornar irrecorríveis as decisões da AdC no decurso do processo, não obstante poderem lesar irreparavelmente os direitos das empresas investigadas.

Haveria outras soluções muito mais equilibradas, como ser o juiz a decidir se, no caso concreto, o recurso deve ter ou não efeito suspensivo, evitando-se o caráter meramente dilatório que alguns recursos podem ter, mas permitindo que, quando se justifique, o tribunal decida de outra forma. E o mesmo se diga ainda do facto de se prever expressamente que a forma de as empresas reagirem a violações de direitos durante buscas nas suas instalações são unicamente reclamações para as entidades que potencialmente as cometem, vedando-se o recurso direto e em tempo útil a um tribunal que, de forma independente e isenta, avalie e, se for o caso, impeça as possíveis violações.

Estas e outras compressões de direitos são previstas ao mesmo tempo que o quadro de sanções às empresas se agrava ainda mais. A clarificação de que o volume de negócios mundial das empresas é a referência para a sanção e a possibilidade de proibir grupos económicos de participarem em concursos públicos, são sanções com um potencial devastador tal que, num Estado de Direito, teriam de ser acompanhadas de um reforço significativo dos direitos de defesa das empresas investigadas. Todavia, sucede precisamente o contrário.

O Anteprojeto está em Consulta Pública e participar é mais importante do que possa à primeira vista parecer. O enforcement das normas de concorrência está a conduzir à criação de um Estado de Polícia dentro de outro Estado, onde tudo é permitido a quem investiga e pune e pouco, e cada vez menos, a quem é investigado e se defende. Não é pela via da facilitação da investigação e da punição que se serve a concorrência.

A concorrência serve-se com a instrução de casos sólidos, bem fundamentados, em que os direitos das empresas são respeitados e a atuação da Autoridade pode ser sindicada junto do Tribunal a todo o tempo. Ainda que se perca potencialmente em rapidez, ganha-se em credibilidade. E o caminho não pode deixar de ser esse.