O impensável vai acontecer. As famílias em dificuldades no crédito hipotecário, e que fiquem sujeitas à revisão das condições, vão ficar marcadas, como um estigma. O diploma com as medidas de acompanhamento e mitigação do aumento da taxa de esforço nos contratos de crédito para aquisição ou construção de habitação própria e permanente entrou em vigor há alguns dias, e a perceção da generalidade do consumidor é que se trata de um processo simples que as vai livrar da sua maior dívida e asfixia.

Enganam-se. Isto é um problema em crescendo que começa pela falta de literacia financeira, que faz com que as famílias não compreendam que o seu principal ativo é o tecto, e, como tal, é na habitação que devem colocar todas as fichas do jogo da vida.

O que nos diz o diploma é que as instituições financeiras têm o dever de averiguar a taxa de esforço com 60 dias de antecedência relativamente à alteração da taxa de juro. Sendo uma obrigação dos bancos, estes podem solicitar ao mutuário os documentos para verificarem a situação em questão. E aqui começa o primeiro problema.

Quem tem um “mau” IRS, ou seja, um IRS com ordenados reduzidos mas que tem poupanças em depósitos ou aplicações financeiras, ou recebeu uma herança, ou vive de rendimentos através de uma empresa onde tem grandes benefícios, e que sempre cumpriu com o banco, passa a ser olhado como potencial cliente de risco pela instituição financeira.

E assim que for sinalizado pelo banco como cliente de risco, embora sempre tenha cumprido com os pagamentos e diga que não quer qualquer reestruturação, fica obrigatoriamente marcado no banco. Ora, isto é um modelo de denúncia financeira das pessoas.

Diferente era o quadro legal das moratórias e, ainda assim, sem o comunicarem ao Banco de Portugal, alguma banca comercial terá marcado internamente os clientes que aderiram ao modelo. A conclusão é que se está a adulterar aquilo que deve ser o primado da despesa familiar que é, repetimos, o tecto.

Depois, com este diploma e após ser obrigado a entrar na renegociação (lembremo-nos que o banco tem o dever de avaliar a taxa de esforço), passa a ser cliente de risco e tem hipotecado o futuro quando solicitar qualquer outro tipo de empréstimo.

Recorde-se que para beneficiar destas medidas de mitigação do aumento da taxa de esforço é necessário que o crédito hipotecário seja relativo a habitação própria e permanente, tenha taxa variável indexada à Euribor e o capital em dívida não ultrapasse os 300 mil euros, uma condição que já criticámos numa anterior opinião. De realçar ainda que todos os cartões de crédito do mutuário serão cancelados.

E, não menos grave, é o facto de a medida não ser boa para os bancos. Vários gestores já o afirmaram, pois o banco terá de provisionar os montantes renegociados. Claro que esta é uma medida imposta pelo banco central, que, por sua vez, reflete a visão do Banco Central Europeu quanto a rácios e riscos.

Um outro dado preocupante é que a taxa de esforço na aquisição de habitação situava-se em 41% em termos médios para o terceiro trimestre, segundo a plataforma Idealista, o que compara com 28% de 2021. Entretanto, os especialistas da Allianz Trade, acionista do segurador de crédito Cosec, alertam para a violência da subida das taxas de juro que terá um impacto muito forte no segundo trimestre de 2023. Estas não são boas notícias para ninguém.