O mundo foi confrontado no dia 16 de fevereiro com a morte do oposicionista russo Alexei Navalny, na colónia penal IK-3, situada na vila de Kharp, no Ártico. Morreu pouco antes do início da Conferência de Segurança de Munique, onde se encontrava reunida uma parte muito significativa da elite política ocidental, que trata de assuntos de segurança e defesa.
A Administração Biden, que não consegue explicar o assassínio de prisioneiros de alto perfil nas prisões norte-americanas, como foi, por exemplo, o de Jeffrey Epstein no Centro Metropolitano de Correção, de Nova Iorque, não teve quaisquer dúvidas em atribuir, de imediato, a Putin, a responsabilidade pela morte de Navalny, ocorrida lá longe na Sibéria. Outros países fizeram uma avaliação similar, como a Suécia, que, no entanto, não foi capaz de explicar a destruição do Nordstream nas suas águas territoriais.
O percurso político de Navalny é cheio de contradições passadas despercebidas a grande parte da comunicação social que integra o mainstream. Faz-nos lembrar o “Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde”, de Robert Stevenson. Procurarei trazê-las à liça, para que o leitor possa ter uma noção mais precisa de quem foi Navalny e o que significou. O seu nome ficou no Ocidente intimamente ligado à luta contra a corrupção e pelos valores da liberdade e da democracia liberal na Rússia. Mas terá sido o seu comportamento compaginável com esses valores?
No que toca à corrupção, a sua imagem de lutador intransigente e impoluto ficou manchada por graves problemas com a justiça. O primeiro remonta a 2009, embora a sentença tenha sido proferida em 2013, quando Navalny foi condenado a 5 anos de pena suspensa por peculato e desvio de fundos de uma grande empresa de madeiras (Kirovles), tirando partido do facto de ser conselheiro de Nikita Belykh, governador da província de Kirov. Na altura, o Tribunal Europeu para os Direitos Humanos recusou-se a reconhecer a sua prisão como politicamente motivada.
Nos finais de dezembro de 2012, vê-se novamente a braços com a justiça devido a uma queixa de Bruno Lepru, à altura Diretor-Geral da sucursal russa da Yves Rocher, contra uma empresa detida pelos irmãos Navalny acusada de peculato. No final de 2014, o tribunal considerou os irmãos culpados. Alexei foi condenado a uma segunda pena suspensa.
Efeito das penas suspensas e da liberdade condicional que gozava, Navalny tinha de apresentar-se regularmente no Serviço Penitenciário Federal, um procedimento que violou frequentemente.
Só no primeiro semestre de 2020 faltou seis vezes. Quando regressou da Alemanha em janeiro 2021, após ser tratado de um alegado envenenamento com Novichok, que inexplicavelmente não provocou danos irreversíveis, nem ninguém com quem privou adotou qualquer protocolo de isolamento de doentes contaminados – nem os médicos russos e alemães, nem a tripulação do avião que o transportou para a Alemanha – e umas férias no Caribe, entrou nos calabouços.
Sem questionarmos as possíveis motivações políticas da sua prisão, interrogo-me sobre o que se diria na TV se um empresário ou político português condenado em pena suspensa tivesse o mesmo comportamento.
Não terá sido por acaso que, numa primeira avaliação, em fevereiro de 2021, imediatamente após a sua detenção, a Amnistia Internacional (AI) não considerou Navalny um prisioneiro de consciência. Pressões sobre a organização fizeram com que esta, três meses mais tarde, alterasse a sua decisão passando a considerar Navalny prisioneiro de consciência, à semelhança do que aconteceu na Ucrânia, em 2022, quando a AI teve de retroceder e alterar as suas críticas sobre o modo como as forças ucranianas colocavam civis em perigo.
Em 2011, Navalny criou a “Fundação Anticorrupção” (FBK), com a missão de combater a corrupção na Rússia. Apenas 22% do seu orçamento tinha origem em doações de simpatizantes no interior da Rússia. Os restantes 78% eram originários do exterior, em particular dos EUA e do Reino Unido. Os sinais exteriores de riqueza evidenciados por Navalny e pelos membros do seu grupo faziam aumentar as suspeitas. Vladimir Ashurkov, o seu braço-direito e diretor executivo da FBK, oficialmente desempregado, vivia num apartamento alugado, no centro de Moscovo, com uma renda que rondava o milhão de rublos por mês.
O mesmo Vladimir Ashurkov foi filmado pelos serviços de informações russos num café em Moscovo a pedir 10-20 milhões de dólares por ano a James Ford, então segundo-secretário para os Assuntos Políticos, da embaixada do Reino Unido em Moscovo e, muito provavelmente, um agente do MI6, para dar início a uma revolução na Rússia.
Dizia Ashurkov: “Se tivéssemos mais dinheiro, poderíamos aumentar a nossa equipa… e isto não é uma grande quantidade de dinheiro para pessoas que têm biliões. A mensagem que estou a tentar passar é a de que os meus esforços de angariação de fundos se dirigem a pessoas da comunidade dos negócios. Temos de jogar noutros tabuleiros… protestos de massas, iniciativas civis, propaganda, estabelecer contactos com a elite e explicar-lhes que somos pessoas razoáveis e que não vamos destruir nada e levar os seus bens, coisas assim”.
Ashurkov pedia também ao Governo britânico para lhes disponibilizar informações que a FBK pudesse utilizar nas suas denúncias, colocando-se assim ao serviço dos serviços de intelligence ingleses. Em 2014, Ashurkov fugiu para Londres, sendo procurado na Rússia por fraude no financiamento da campanha para a presidência da Câmara de Moscovo, a que Navalny concorreu em 2013 e perdeu.
Para impedir a repetição deste tipo de acontecimentos e limitar a ação de organizações estrangeiras sediciosas que se tinham vindo a instalar na sociedade, o Governo russo promulgou uma lei em junho de 2022 “sobre o controlo de atividades de pessoas sob influência estrangeira”, que considerava “agente estrangeiro a pessoa que recebesse ou tenha recebido apoio e/ou esteja sob influência estrangeira sob outras formas e que exerça atividades tipificadas na lei”.
Navalny continuava na prisão a dirigir as ações dos membros da sua Fundação através do Twitter, que, por sua vez, utilizavam o canal Popular Politics, do YouTube, para apelarem ao derrube do governo e à luta armada contra as autoridades. Os apelos incluíam ainda a rendição dos militares russos e a rebelião contra os seus comandantes.
Evolução e pensamento político
Para melhor entendermos o fenómeno Navalny devemos fazer uma incursão ao seu passado político. Navalny começou a sua carreira no Partido Democrático Unido Russo “Yabloko” de tendência social-democrata, liberal e pró-europeia, de onde foi expulso em 2007 pelas suas ideias ultranacionalistas, xenófobas e de extrema-direita incompatíveis com a ideologia de um partido que pugnava pela integração europeia da Rússia.
Desde 2005 que Navalny coorganizava, conjuntamente com grupos neonazis e de extrema-direita, a chamada “Marcha Russa”, um evento anual de cariz xenófobo e racista realizado sob a bandeira czarista – preta, amarela e branca – dirigido contra os imigrantes do Cáucaso e da Ásia Central, em particular os muçulmanos.
Nestas manifestações, Navalny aparecia e discursava ao lado de figuras sinistras como Vladimir Yermolavev, Alexander Belov e Dmitry Demushkin, fundadores e líderes de partidos neonazis (seriam ilegalizados mais tarde). Referindo-se aos imigrantes, Navalny afirmava que “embora as baratas pudessem ser esmagadas com uma pisadela, no caso dos humanos recorria-se à pistola”. Mesmo depois da “operação formativa” nos EUA (ver detalhes adiante), Navalny continua a reiterar no seu blogue, por exemplo em 2013, ideias semelhantes. Ou seja, o processo educativo a que se submeteu nos EUA não surtiu grande efeito e parece não ter abalado as suas mais profundas convicções.
Após a expulsão do Yabloko, Navalny participou na fundação do designado Movimento de Libertação Nacional Russa “NAROD”, de oposição a Putin, onde se manteve até 2010, cujo programa defendia a promoção da Grande Pátria russa e considerava como prioridade as políticas anti-imigração. Apesar da oposição a Putin, Navalny defendeu no seu blogue e em vídeos no YouTube a ação militar russa na Geórgia, em 2008, de onde provinham as “baratas”, nome que dava aos imigrantes, e a sua irradiação da sociedade russa.
Navalny manteve sempre laços estreitos com sectores das elites russas e do aparelho de Estado, cujo apoio lhe era extremamente útil para promover a sua agenda e a deles, sobretudo aqueles segmentos da oligarquia russa que acumulavam ressentimentos contra o Kremlin, não devido ao déficit democrático contra o qual Navalny alegadamente lutava, mas por terem perdido o estatuto que antes gozavam, que lhes atribuía privilégios especiais.
Em 2010, Navalny ruma aos Estados Unidos, mais precisamente à Yale Jackson School of Global Affairs, onde no International Leadership Center (ILC) frequentou, durante quatro meses, um curso de liderança. Como indica o website do ILC, “reunimos líderes em ascensão de diferentes origens, lugares e convicções que se dediquem à prevenção de conflitos e à construção de sociedades melhores”. A escola “desenvolve e apoia líderes inovadores, eficazes e adaptáveis para enfrentar os desafios mais prementes e complexos com que o mundo se depara.” Também o seu chefe de gabinete, Leonid Volkov, participou em 2019 no mesmo programa.
Como outras escolas, o ILC tem por missão preparar indivíduos que os EUA pensam ter potencial para assumirem posições de liderança em países onde pretendem levar a cabo “revoluções coloridas”. As networks criadas por Navalny durante esse período permitiram que a sua filha viesse a estudar na Universidade de Stanford onde, no ano letivo de 2022-2003, se pagava anualmente de propina cerca de 58 mil dólares num curso de licenciatura, um valor que não está ao alcance de qualquer russo da classe média, cujo salário médio ronda os 100 mil rublos, cerca de 1,1 mil euros.
No regresso à Rússia, após a experiência americana, Navalny continuou a organização da resistência ao regime de Putin. Embora se tenha inibido nos últimos anos de participar nas “Marchas Russas”, nunca se distanciou das posições alegadamente incómodas assumidas no passado. As forças da extrema-direita eram sempre convidadas para os protestos por si organizados. Em 2011, Navalny junta-se à campanha anti-imigração e xenófoba organizada pelos neonazis “Parem de alimentar o Cáucaso”.
Em 2013, no seu momento de maior popularidade, concorre à Câmara de Moscovo nas listas do Partido Republicano da Rússia “PARNAS”. Com uma abstenção a rondar os 68%, Navalny foi derrotado obtendo apenas 26% dos votos (632,697), mesmo assim um excelente resultado. Mas, a partir daí, a sua notoriedade foi progressivamente diminuindo. Numa recentemente sondagem, as intenções de voto em Navalny rondavam os 2%. A sua reduzida notoriedade na Rússia contrasta profundamente com a que lhe é atribuída no Ocidente.
Ambiguidades e contradições políticas
Conforme atrás sugerido, não era claro que Navalny tenha sentido necessidade de esconder a sua xenofobia e ultranacionalismo, após regressar dos EUA. Quando confrontado, em várias entrevistas recentes a jornais de referência (“Guardian”, “NYT”, “Der Spiegel”), com as suas afirmações comprometedoras proferidas no passado, nunca mostrou sinal de arrependimento, chegando mesmo a reiterá-las.
Navalny conseguiu a quadratura do círculo ao defender e condenar simultaneamente as ações militares russas na sua vizinhança próxima. Se, por um lado, condenou a intervenção militar russa na Ucrânia, por outro, apoiou a ocupação da Crimeia (2014) e as ações militares do Kremlin na Abecásia e na Ossétia do Sul (2008). “Como Putin, Navalny considerava a Ucrânia uma construção artificial”. A sua veia ultranacionalista levou-o a afirmar que russos, bielorussos e ucranianos eram partes integrantes da mesma nação, ou seja, da nação russa, posições que não lhe valeram popularidade na Geórgia e na Ucrânia.
Como é sabido, a estratégia tanto dos EUA como da Alemanha passava por: numa primeira fase, provocar uma mudança de regime em Moscovo e instalar um líder obediente; e, numa segunda, desmembrar a Federação russa jogando na promoção de tendências regionais separatistas, com o objetivo de criar cisões nas elites dirigentes e desestabilizar o regime de Putin. Não obstante as suas posições ultranacionalistas exacerbadas, a ambição política de Navalny falou mais alto, prestando-se a alinhar num jogo em que nunca passou de peão de brega.
Para concretizar os seus objetivos, Washington costuma não olhar frequentemente a meios, recorrendo amiudadas vezes à fórmula “o inimigo do meu inimigo é meu amigo”. Apesar das consequências nefastas desta abordagem (Al Qaeda, Estado Islâmico, etc.), os EUA continuam a insistir nelas.
Não perdem a oportunidade para terem o seu “filho da mãe”, desde que isso lhes proporcione vantagens no curto prazo, sem pensarem nas consequências amargas que advêm dessas decisões. Esse princípio foi utilizado nas intervenções no Leste europeu, onde combinaram “fações dissidentes da oligarquia e do aparelho de Estado, por um lado, e elementos de extrema-direita e neonazis, por outro”, como ficou bem patente na Ucrânia.
O recurso aos préstimos de Navalny insere-se nessa abordagem. Assim se explica que, mesmo sendo ultranacionalista, ele tivesse apoiado os projetos centrífugos e regionalistas abraçados por vários segmentos das elites políticas e económicas que emergiram com a implosão da União Soviética. Estamos recordados, quando Navalny defendeu a secessão do Cáucaso do Norte da Federação russa (deixem as “baratas” ir-se embora), ou o aumento da autonomia regional, e o regresso às eleições diretas dos governadores regionais.
Em 2019, Navalny fez um longo périplo pela Rússia profunda, ajudando a organizar manifestações contra Moscovo em Yekaterinburg, nos Urais, promovendo a formação da República Independente dos Urais; e, em 2020, apoiou os protestos contra Moscovo na cidade de Khabarovsk, localizada no extremo-oriente russo, na sequência do afastamento do governador da cidade, onde se gritava “liberdade” e “renuncia Putin”.
Epílogo
A antipatia dos dirigentes norte-americanos, e do Ocidente em geral, relativamente a Putin não se prende exatamente com a natureza do regime político da Rússia, matéria em que o Ocidente tem muitas pedras no sapato, mas com o facto de Putin ter impedido a desagregação da Federação da Rússia, e a sua ação ter sido decisiva para parar um processo iniciado no tempo de Ieltsin.
Putin foi um contratempo, um empecilho à concretização desse projeto. Mas os EUA não desistiram de provocar uma mudança de regime em Moscovo que lhes permita explorar os imensos recursos naturais da Rússia, como fez no início da década de 90, do século passado, com os recursos energéticos das repúblicas da Ásia Central, imediatamente após a capitulação da União Soviética. Como a guerra na Ucrânia, Navalny era uma peça na engrenagem, para implementar essa estratégia complexa.
Para lá de uma razoável certeza, há factos incontornáveis. Navalny não era o desafiador de Putin, o seu grau de notoriedade na Rússia estava muito longe daquele que lhe é atribuído no Ocidente, não foi inicialmente preso por motivos políticos, e as suas credenciais de lutador anticorrupção são débeis. Navalny era, acima de tudo, um oportunista ultranacionalista, xenófobo e racista cheio de contradições. Deve ficar claro que nem todos os apoiantes de Navalny na Rússia são pró-Ocidente, nem que ele era um democrata liberal.
Cui bono a morte de Navalny? Não é seguramente a Putin e ao seu regime; não lhe traz vantagens e só o prejudica. Para que quereria Navalny morto? Não é fácil encontrar uma resposta aceitável. Veio ofuscar a imagem positiva que Putin tinha conseguido com a entrevista de Tucker Carlson e a vitória militar das forças russas em Avdeevka. Em contraponto, não se pode deixar de registar a completa ausência de indignação e repúdio pelas mortes de dissidentes nas masmorras ucranianas sem julgamento, em particular, a recente morte do jornalista e bloguer chileno-estadunidense Gonzalo Lyra. Fica por explicar a dualidade de critérios.
Custa ver o Ocidente apostar em alguém tão contraditório e inconsequente como Navalny para promover a democracia na Rússia. Não haveria alguém mais credível? Porquê investir num ator caído em desgraça, com tantas fragilidades e sem uma máquina política partidária por detrás para o projetar?
Esta opção não deixa de ser reveladora das dificuldades dos EUA em conceberem e implementarem uma estratégia vencedora. A Administração Biden não conseguiu ir além de uma campanha de Comunicação Estratégica magistralmente gizada e com sucesso garantido no Ocidente – colocando mais um prego na demonização de Putin –, mas com poucos ou nenhuns resultados na alteração do regime em Moscovo, como as próximas eleições muito provavelmente o comprovarão.