A carta aberta assinada recentemente por mais de 150 personalidades ligadas às Artes e meios académicos – onde pontuam nomes célebres como J. K. Rowling, Martin Amis ou Noah Chomsky – e que tem como alvo a “cultura de cancelamento”, veio provar, uma vez mais, como as preocupações desta elite, em plena pandemia, estão completamente alheadas da realidade.

De repente, é mais difícil para essas vozes da elite fazerem-se ouvir, sem contestação, no meio da cacofonia de vozes digitais. De repente, as tiradas transfóbicas de J. K Rowling no Twitter são denunciadas e desconstruídas por aquilo que são: pura transfobia, o que desencadeia um processo virulento em que a autora se decide colocar, por vezes, no papel de vítima de um assalto organizado contra a liberdade de expressão, com consequências profissionais.

Este é apenas um exemplo de um padrão que abriu linhas divisórias entre os representantes do poder e as novas e jovens vozes marginalizadas que decidiram expor, de uma vez por todas, as suas perspetivas e assumir o controlo das suas narrativas, entrando nos grandes salões sem pedir licença ou desculpa.

As vozes do ativismo que permitiram formar movimentos progressistas poderosos como Black Lives Matter ou Me Too nasceram principalmente na Internet, permitindo com enorme rapidez exigir igualdade e o fim da impunidade a uma escala global. Não há como negar que estamos, em 2020, no vórtice de uma enorme convulsão histórica e a viver vários “maios de 68”, travando batalhas em simultâneo nas ruas, na forma de protestos, e no mundo digital.

Dependendo de quem escutamos, estas novas vozes são descritas como inflamatórias ou intolerantes, mas se olharmos para muitas das suas reivindicações, estas passam por reformas estruturais, fim da violência policial e acesso democratizado à habitação, educação e saúde.

Ainda assim, o statu quo, que sobrevive relativamente incólume aos efeitos devastadores do coronavírus, continua a lançar os seus gritos de raiva por ser contestado a toda a hora e nem Portugal tem estado imune a este fenómeno. O Twitter tem-se tornado um palco muito feroz de debate e confrontação. Mais do que nunca, o Twitter tornou-se uma plataforma politizada, essencial para desconstruir e rebater várias agendas, com muitas vozes estridentes a serem ouvidas em pé de igualdade. Não deixa de ser uma bolha, mas uma bolha altamente influente com a capacidade de impor as narrativas do dia a uma velocidade vertiginosa.

A “cultura de cancelamento” não é a verdadeira ameaça como muitos nos querem fazer acreditar. A verdadeira ameaça é, sim, a recusa em aceitar o momento decisivo que atravessamos. As lutas progressistas que agora ganham força serão longas e duras e não irão parar enquanto não transformarem para melhor as sociedades em que vivemos.