“Com um grande poder advém uma grande responsabilidade”. Às portas da mais violenta e potencialmente mais significativa alteração do paradigma tecnológico, com diversas revoluções ao mesmo tempo, o mundo tem hoje uma velocidade de adopção das novas tecnológicas de tal forma rápida, que coloca em causa o estabelecimento, em tempo útil, de salvaguardas contra os efeitos perniciosos deste novo mundo.

Um desses casos é a tecnologia 5G, que promete revolucionar por completo a interactividade do ser humano com o mundo digital, abrindo sem reservas as portas das cidades inteligentes. Contudo, esta nova tecnologia que começa agora a ser implementada tem custos, que no curto prazo irão transformar a nossa relação com a privacidade, acabando de vez com a liberdade tal como a conhecemos hoje.

Uma das características que diferencia a tecnologia 4G da 5G é que as antenas da primeira são substancialmente maiores e têm um raio de acção superior, ao passo que as da nova tecnologia gastam menos energia, mas têm um raio de acção inferior, o que obriga à implementação e disseminação de um maior número de antenas. Ora, neste ponto existe desde logo um potencial problema de privacidade que à primeira vista pode não ser evidente: é que se hoje é possível identificar onde está um determinado sinal de telemóvel, no futuro essa localização será muito mais fidedigna, permitindo, na prática, que qualquer um de nós seja vigiado nos seus trajectos com um elevado grau de precisão.

Em velocidade de pico, a 5G consegue atingir velocidades vinte vezes superiores às da 4G, permitindo fazer download, em velocidades normais, de um filme em alta definição em apenas meia dúzia de segundos em vez dos actuais sete minutos.

Esta velocidade, com o apoio de um maior número de aparelhos, permitirá milhões de operações em tempo real e em simultâneo, onde a rapidez é um elemento crítico, à imagem dos veículos autónomos. Mas suportará igualmente os biliões de novos aparelhos da internet das coisas (Internet of Things – IoT), onde se incluem os electrodomésticos, assim como sistemas de iluminação, alarmes, enfim, tudo o que num futuro próximo venha a estar ligado à rede, sendo controlados e programados pelo utilizador através de uma simples aplicação.

Duas questões se colocam. Primeira, todos estes aparelhos aparentemente inofensivos podem ser postos de escuta, bastando para isso terem um microfone incorporado. A segunda questão é que a velocidade aumenta para o utilizador, mas também para um potencial hacker, ou seja, posso estar a transmitir uma filmagem e a ser filmado ao mesmo tempo, não dando sequer por isso, ou simplesmente estar a ser filmado por outros telemóveis ao meu redor, caso eu seja um alvo de escuta, visto que como referi a localização dos aparelhos, meus e dos que estão à minha volta, tornar-se-á muito mais exacta.

Para além disso, a tecnologia 5G por utilizar menos energia, permitirá a colocação de sistemas de vigilância indetectáveis de muito reduzida dimensão, operados apenas por via remota e com uma autonomia de vários meses graças a uma pequena bateria, aumentando assim o campo de acção de quem queira espiar terceiros.

O problema ganha contornos mais sérios quando se pensa que qualquer entidade privada, país, serviços de informações ou exército cibernético poderá efectuar, em qualquer ponto do mundo, ataques dirigidos a uma pessoa ou mesmo a uma cidade inteira, conseguindo por exemplo, em tempo real, dados sobre trajectos habituais, escolhas dos consumidores ou simplesmente conversas pessoais. O potencial é quase ilimitado se a isso juntarmos a fraca segurança da esmagadora maioria dos dispositivos IoT, bem como a utilização da inteligência artificial e uma maior capacidade de computação, com vista a analisar um elevado número de dados em simultâneo.

É certo que mesmo sem a 5G já muitos problemas de violação de privacidade ocorrem, como a recolha de dados e de imagem através das smart TVs sem conhecimento dos seus utilizadores, para não falar no controlo das câmaras dos laptops ou smartphones. Contudo, existem restrições não apenas de velocidade de acesso aos dados como de implementação física. Ora, com o 5G e a proliferação das IoT por todo o lado, dentro e fora de casa, o mundo será um gigantesco posto de escuta em tempo real, para quem tenha intenções de violar a privacidade alheia. É que ao contrário do que acontece hoje com as redes sociais, onde somos nós que colocamos a informação por iniciativa própria, no futuro essa informação ser-nos-á retirada sem sequer nos apercebermos.

Tendo em conta que o avanço da tecnologia é desejável e imparável, cumpre aos governos, tomar atempadamente medidas que protejam os cidadãos (na medida do possível), ou que, no mínimo, os informem desta realidade – sendo certo que no mundo digital nada, repito, nada é inviolável.

E se hoje não temos ainda uma percepção dos riscos que corremos é porque esse sistema de “escuta” ainda não é global, mas podemos ter uma pequena noção através dos sistemas de monitorização implementados na China, com câmaras de vigilância por todo o lado, incluindo polícias com óculos com câmaras incorporadas que identificam imediatamente os cidadãos, sistemas estes complementados por um “ranking social”,que já hoje impede milhões de chineses de viajar de comboio à conta de delitos menores que praticaram.

Será um mundo sem segredos, não necessariamente mais transparente, mas antes menos livre.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.