Acompanho de perto a evolução da esquerda portuguesa desde o início da fase da troika em Portugal. Fiz também o meu contributo para essa evolução enquanto militante e dirigente de um partido de esquerda, o LIVRE, que surgiu desse período difícil da História portuguesa.

Em todos estes anos tive a oportunidade de observar e aprender como se manobra nos bastidores e como as estratégias políticas são esboçadas tendo em mente a conciliação de dois eixos: os interesses do eleitorado e os interesses dos partidos que desejam aumentar a sua influência, mantendo-se vivos no poder o máximo de tempo possível. A verdade é que nem sempre os interesses dos partidos coincidem com os interesses dos eleitores, como se evidencia de forma tão flagrante pela crise política atual.

À hora da escrita desta crónica, ainda não se conhece o desfecho da votação do Orçamento do Estado, mas sei que o spin político está mais intenso do que nunca por parte dos atores da ex-geringonça. Numa tentativa de justificarem a sua incapacidade de negociação e coordenação, há um desespero em criar narrativas que possam conferir alguma legitimidade a esta decisão que deixa agora os portugueses estupefactos. O problema é que nenhuma das justificações a esta crise política desnecessária parece colar de forma credível.

O Orçamento do Estado é fraco e poderia ir mais longe? Sem dúvida. No entanto, é incompreensível que uma assembleia composta por uma maioria de esquerda tenha feito uma tão má leitura do momento crucial que atravessamos, ignorando a gravidade da crise social e económica que está à nossa porta. Alguém duvida de que essas desigualdades serão ainda mais exploradas pelas ideologias nacionalistas e populistas?

Qualquer que seja o resultado, estamos perante o início de uma fase mais instável e sujeita à ingovernabilidade. A julgar pela história recente, o eleitorado tem tendência a castigar estes fracassos governativos, abrindo caminho a novos ciclos políticos. A nova configuração de forças políticas que possa emergir das próximas eleições legislativas irá reforçar a direita, assim como a extrema-direita, ainda mais após um segundo mandato socialista fortemente desgastado pela pandemia de Covid-19.

A verdade é que a ruína estrepitosa da geringonça estava destinada a acontecer no momento em que os partidos envolvidos não lutaram por um acordo escrito em 2019 nem tentaram forçar esse entendimento. Que legitimidade têm o BE e o PCP em acusar o Partido Socialista de não executar grande parte das suas medidas quando não lutaram por fazer parte da solução governativa em 2019, decidindo colocar-se à margem da responsabilidade, exigindo compromissos quando eles próprios foram incapazes de se comprometer?

A tempestade perfeita que enfrentamos e que já estamos a sentir com o aumento dos preços energéticos, a disrupção global nas cadeias de distribuição, a subida da inflação e taxas de juro, e o fim das moratórias começam a formar um quadro negro. Nem tudo está dependente de nós, mas aquilo que dependia parece ter falhado com estrondo. Siza Vieira refere no debate que “um dia alguém terá de explicar estes tempos” e tem razão. Essa não será tarefa fácil para os que vão ficar a apanhar os cacos da geringonça.