Enquanto o país discute alegremente os SMS do ministro das Finanças, o lançamento de uma iniciativa europeia sobre restrições aos pagamentos em dinheiro é olimpicamente ignorada pelo debate público. É preocupante que por cá não se discuta o tema. Mas mais preocupante é o tema em si mesmo.
A Comissão Europeia está a dar os primeiros passos para adotar legislação para restringir os pagamentos em dinheiro na União Europeia. A medida insere-se no plano de combate ao terrorismo e podia ter sido redigida pela mão de Donald Trump ou de um dos seus assessores mais extremistas. O raciocínio é simples. O pagamento em dinheiro permite o anonimato da transação. Embora o anonimato possa ser legítimo em alguns casos, também é muito útil para financiar atividades terroristas e outras atividades criminosas. As autoridades policiais indicam que “o dinheiro físico é a matéria-prima da maioria das atividades criminosas”. Logo, restrinja-se o uso do dinheiro físico para dificultar o funcionamento de redes terroristas e de outras atividades criminosas.
No final deste caminho, que já começou a ser trilhado em diversos Estados Membros, incluindo em Portugal, o dinheiro físico vai acabar. E o maior impacto não será a criação de dificuldades ao terrorismo ou a outras atividades criminosas, que nem sequer é o verdadeiro móbil das medidas. A falência dos Estados, a falta de receita e a necessidade de apertar a malha fiscal é o que justifica verdadeiramente as restrições planeadas. Junte as medidas do fim do sigilo bancário que têm sido propostas (e que tudo indica que, mais tarde ou mais cedo, acabarão por avançar) com as autoridades fiscais a terem acesso direto à sua conta bancária, e é fácil perceber que será cada vez mais raro gastar um cêntimo sem que fique registado. Junte ainda a crescente digitalização da economia, a transição da nossa vida para o online, e do registo de tudo o que fazemos, lemos, compramos, conversamos, pesquisamos, e pense como será o paradigma de vida e de liberdade individual num futuro que está mais próximo do que pensamos.
O maior impacto do fim do dinheiro físico não será no terrorismo. Será sim na nossa esfera privada. Deixaremos de poder fazer uso privado, e inteiramente legítimo, dos nossos recursos enquanto os terroristas encontrarão formas de atuar e de se financiar com ou sem dinheiro físico.
Chegou a altura de introduzir o tema da proteção da privacidade e da liberdade individual neste debate. O terrorismo ou a necessidade de receita fiscal do Estado não justificam tudo. Seguramente não justificam que o Estado possa controlar todos os nossos movimentos e saber rigorosamente o que cada um de nós faz com o que temos. Talvez fosse a altura de discutirmos algo mais importante do que os SMS do ministro.