Para quem acompanhava as movimentações aparelhísticas, a vitória de Rui Rio não surpreendeu. Diziam-me com segurança, do interior do PSD real, que as derrotas de Rio nos debates, que os disparates políticos que foi fazendo ao longo desta campanha, em nada pertubariam a solidez do “cacique”. E assim foi.

Do outro lado, noutra realidade, o país parou com as directas. Os debates foram sucessos de audiência, o PSD foi assunto recorrente de conversa, os portugueses na sua maioria seguiram com interesse estas eleições. Acima de tudo, sendo eu insuspeito para dizê-lo, esta mobilização geral de interesse e opinião mostra a dimensão e a importância do PPD/PSD na sociedade portuguesa. Não é irrelevante para ninguém o futuro do PSD tal como o conhecemos, como hoje sentimos que não foi irrelevante o apunhalamento de Costa a Seguro no PS.

Não escondo que, não tendo directamente nada a ver com o assunto, teria uma clara preferência pela eleição de Santana Lopes. O país precisa de mais política, de coragem, de um projecto de futuro. O país está exausto desta desvirtuação da política, desta entropia das manobras de aparelho, do divórcio consumado entre a realidade interna dos partidos e a vida de todos os dias dos portugueses.

Quem segue as redes sociais, não pode deixar de notar uma tendência generalizada para o reconhecimento do estatuto real de Pedro Passos Coelho. A esquerda que não lhe deu paz, e lhe usurpou o lugar, continuará a defender-se como alternativa. O friso de notáveis que rodeia Rio, com particular destaque para Ferreira Leite, Morais Sarmento, Pacheco ou Capucho, nunca o admitirá. Ainda assim, Passos insistiu em fazer tudo o que devia.

Aguentou por dever ético. Ouviu tudo em silêncio. Provou um desprendimento inédito. Ao contrário de outros, nos diferentes partidos, não condicionou minimamente a sucessão. Saiu de cena no momento em que devia. Tudo com a serenidade que só assiste aos Homens de Estado. Sim, até novidades em contrário, e muitíssimo desejadas, Passos Coelho é o último Homem de Estado.

Independentemente do que Rio fará, e tendo o inegável direito ao seu período de graça, o que se torna público da sua eleição é preocupante. Não estando o PSD obrigado a iniciar a reforma dos partidos políticos, podia ter agarrado essa oportunidade.

Há 40 anos, PS, PSD e CDS constituiram-se como referências e guardiões da Democracia e da Liberdade conquistadas. Os partidos do chamado arco da governação, ou seja, do espectro democrático, tiveram o endosso do Povo para a normalização do país saído da ditadura. Seria através dos partidos que o Povo exerceria o seu poder, devendo estes, nas suas diferentes concepções do mundo, ser espelho das diferentes facetas do tecido social. Foi assim no início, tendo-se perdido esta matriz fundacional algures pelo caminho, muito provavelmente no deslumbramento cavaquista dos anos 80.

Hoje, as máquinas partidárias são monstros de entropia, existindo apenas para a conquista e manutenção do poder das clientelas que as alimentam. Nenhum cidadão normal aguenta muito tempo a convivência com esta gestão diária dos pequenos poderes, da intriga, do carreirismo. Os exemplos que nos chegam dos Açores, com o conglomerado familiar de César, ou do continente, com a concentração inusitada de competências na família de Vieira da Silva, são as caricaturas mais visíveis de todo um sistema. Por todo lado, Césares e Vieiras mais ou menos pequeninos urdem dia e noite as suas teias de sobrevivência no sistema.

A pouca-vergonha da unanimidade nas assessorias no município da capital atesta que nenhum partido escapa a esta lógica insustentável. A expulsão dos melhores, a negação absoluta do debate, a diabolização do pensamento alternativo ou crítico, são prática comum da esquerda à direita. Acabou, encarregaram-se de acabar, com a razão fundacional dos partidos portugueses. Quebrou-se o pacto implícito entre o Povo e os partidos. Hoje votamos por exclusão de partes, no mal menor ou, com muita sorte, se reconhecemos em alguém uma comunhão de interesses ocasional. É pouco. É perigosamente pouco.

Fenómenos como Rui Moreira explicam-se por esta transferência de titulares do contrato de confiança entre eleitores e eleitos. Onde antes os eleitores endossavam os partidos, hoje preferem confiar o voto a quem aparece despojado da tal máquina, constituindo-se como o rosto das contas a prestar, e prestando-as efectivamente.

Os novos movimentos políticos terão de nascer naturalmente, por junção em torno de desígnios comuns, de afinidade ideológica, de projectos partilhados. Terão de obedecer a padrões de elevada permeabilidade social, de ser espaço de debate e partilha, de reconstruir o sentimento de pertença perdido. Terão de estar transversalmente na sociedade, e não em conflito ou à margem desta mesma sociedade.

A Democracia enfraquece a cada vez que a abstenção aumenta, a abstenção aumenta a cada vez que os partidos se fecham, as vulnerabilidades do sistema aumentam a cada vez que é pervertido. São tempos de um misto de muito pessimismo e alguma esperança para quem gosta de política e se preocupa com a Democracia. A convocatória está aí, a resposta vai tardando.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.