Os Estados Unidos da América, a par da China, tem sido o país com mais ressonância mediática. Esta situação resulta não só de ser a superpotência mundial, mas também porque o seu papel interno e externo está a ser questionado. Nisso, Estados Unidos e China têm em comum o facto de a pandemia e as mudanças globais que se avizinhavam estarem já a produzir os seus impactos, criando insatisfação ao nível interno e reforço de posicionamento ao nível externo.
A pandemia, com efeitos devastadores na saúde pública, e a inépcia inicial das autoridades geraram um incremento do descontentamento interno. O assassinato de George Floyd tocou feridas antigas, exacerbadas pela situação interna, caracterizada pelo aumento do desemprego e do descontentamento com algumas políticas públicas. Os tumultos que se lhe seguiram e alastraram ao resto do mundo testemunham esse descontentamento. Esta propagação mostra como os Estados Unidos ainda são a superpotência mundial, capaz de influenciar internacionalmente os outros países, fazendo sair à rua em tempo de pandemia milhares de pessoas.
Esse poder ainda lá reside. É curioso ver como em todos os países se repercutiram os protestos, embora a situação tivesse ocorrido nos Estados Unidos. Raras foram as manifestações frente às embaixadas norte-americanas, transportando o protesto para as realidades nacionais, apesar das especificidades de cada país. Por exemplo, a presença multiétnica não é idêntica em todos os países onde houve manifestações, nem no seu volume demográfico, nem na sua constituição, nem no impacto que tem na sociedade local.
EUA, um país americano
Não há dúvida que os Estados Unidos enfrentam um momento difícil da sua história de nação ainda jovem. É interessante como o país se enquadra entre as nações ocidentais e as lidera, sendo esquecida, amiúde, a sua génese e evolução. Os Estados Unidos são fruto de um projeto colonial britânico e a sua independência foi gizada por uma elite se não europeia, pelo menos europeizada e identificada com os seus valores.
Aliás, esta situação é comum aos países de todo o continente americano. São Estados nascidos de projetos coloniais/imperais, cujas independências foram desenhadas por descendentes de colonos, mantendo, portanto, todos os privilégios de classe até então existentes. Na sua maioria são, ainda, sociedades escravocratas ao tempo da independência, diferenciando-se das sociedades com escravos.
Na sociedade escravocrata, o sistema de produção e a sociedade têm a marca da escravatura, todas as hierarquias são criadas a partir da existência de um tipo de trabalho, exercido por pessoas que não têm quaisquer direitos sociais ou de cidadania. Mesmo em países americanos, onde tal foi apagado, como é o caso da Argentina, essa memória tem sido recuperada, no sentido de se perceber como a sociedade lidou com a escravatura e como essa situação marcou a cultura e sociedade locais.
O trabalho não transitou de imediato para o trabalho livre, assumindo variantes que passaram pelo trabalho serviçal, sobretudo nas grandes obras públicas ou nos momentos seguintes à libertação das pessoas escravizadas.
A assimetria entre a elite e os descendentes de antigos escravos e os imigrantes que, entretanto, forneciam novas alternativas à produção, foi sempre muito marcada e muito lentamente refletida nas mudanças estruturais destas sociedades. Como tal, também se caracterizam pela pós-colonialidade, apesar de este termo raramente ou nunca ser aplicado ao caso dos Estados Unidos.
As contradições herdadas de uma sociedade colonial de características escravocratas dificilmente se apagam, mas é surpreendente a forma como essas marcas se mantiveram até hoje, apesar da luta pelos direitos cívicos ser já longa. A forma como se classificam pessoas entre nativos americanos, afro-americanos, hispânicos, etc., apesar de serem naturais dos Estados Unidos, ainda mostra a marca diferenciadora segundo a pretensa origem do indivíduo, relegando-o de imediato para uma determinada franja da sociedade.
É, também, de notar que os únicos que carecem de classificação são os euro-americanos, desde que não sejam latinos. Toda esta diversidade colocou entraves à homogeneização da sociedade norte-americana, apesar desse sonho – o sonho americano de prosperidade, liberdade e concretização individual.
Ler os Estados Unidos
Por coincidência, e ainda antes destes acontecimentos que agitam a sociedade norte-americana, tinha começado a ler um livro intitulado “Um Verão especial”, da autoria de Elin Hilderbrand, publicado em abril pelo Círculo de Leitores. Na altura, o que me atraíra no livro era o facto de esta autora o ter escrito quando fizera 50 anos de idade, reportando-se à realidade do seu país no ano do seu nascimento.
Em 1969, a humanidade conquistava a lua, pelos passos dos Estados Unidos, combatia-se no Vietname e havia agitação pelos direitos cívicos dos “afro-americanos”, muitos deles já pessoas destacadas profissionalmente (no livro há personagens que são juízes ou médicos), mas ainda apartadas de um convívio social multirracial. Apesar da narrativa se passar em Boston, portanto longe dos estados confederados marcados pela segregação racial, ainda persiste o afastamento social entre pessoas de diferentes origens étnicas.
Este livro, não sendo literariamente ambicioso, não deixa de ser uma leitura muito agradável sobre a vida desses tempos nos EUA e também uma reflexão sobre o papel social das mulheres numa sociedade em que urgia a transformação. Oscilando entre a aclamação dos valores americanos e o seu questionamento, o livro não tem heroínas e a mensagem final é elucidativa: o ódio só se vence com o amor; a discriminação só se combate com a aproximação e compreensão.
As várias mulheres, com diferentes idades e crenças, simbolizam os vários matizes dessa sociedade: a mulher mais autoritária e conservadora, a jovem progressista e envolvida no combate cívico, a jovem que vê a sua vida transformar-se com o casamento, a adolescente que está a descobrir as contradições do mundo e a mulher madura que simboliza a mãe e esposa exemplares. Estas narrativas construídas no feminino entrecruzam-se e põem a nu também as contradições daquela sociedade.
Os EUA conquistavam a lua, mas havia uma sociedade a repensar-se em terra. E, como uma das personagens diz, o mundo perfeito e harmonioso ia-se desmoronando. Se a lua dava aos EUA, a afirmação internacional que faltava e auxiliava a exportação do sonho americano, este mesmo sonho ia desabando para os americanos que viviam todas as contradições de uma sociedade que oscilava entre uma cultura libertária de Woodstock e uma sociedade conservadora. A humanização dos heróis, dos que vão à lua até aos que se sentavam no Senado americano, contribui para essa desmistificação do tal sonho americano.
Depois do sonho
Volvidos 50 anos, muitos dos problemas aflorados por estas personagens continuam a caracterizar a sociedade norte-americana. O sonho americano desvaneceu-se, mas as suas contradições e promessas ainda agitam o mundo que segue atentamente o que ali se passa. Essa capacidade de liderança ainda faz dos Estados Unidos uma superpotência. Todavia, uma superpotência cujas contradições são cada vez mais visíveis e que para concretizar o lema do presidente Donald Trump, “America First”, terá de primeiro resolver os seus problemas domésticos e encarar o seu passado tal como ele é.
Nunca nenhum país tinha ido tão rapidamente de uma posição de subalternidade colonial para um posto de liderança mundial, assegurado pelo fim da Segunda Guerra Mundial e da nova ordem que daí resultou. Tudo era novo e promissor, pelo que provavelmente se acreditou que o sonho americano poderia chegar a todos, mesmo sem mudanças estruturais na sociedade e na mentalidade. Tal não aconteceu. A ideia de sonho americano que se exportou não foi capaz de ultrapassar a década de 60 do século XX no seu próprio país.
Depois do sonho, fica a realidade. A verdade é que os EUA ainda não permitiram que o sonho americano se democratizasse. Essa tarefa é mais árdua do que manter a liderança internacional neste momento de crise. Mesmo com a sua liderança desafiada no futuro, é garantido que os Estados Unidos ainda dificultarão muito a vida a quem quiser alterar o seu statu quo. Assim sendo, a dúvida do sucesso ou não dos Estados Unidos está no seu interior, porque este também é o país que votou no Presidente Trump para se recentrar em si próprio, logo nos seus próprios problemas. Conseguirá o país resolver em pouco tempo aquilo que não conseguiu mudar em cinco décadas?