O que sentir quando recebemos um telefonema a dizer que o filho muito querido de amigos muito queridos perdeu a vida no mais surreal dos acidentes na noite que agora termina? Faz-se um silêncio denso, falta-nos o ar, o discernimento e as palavras ficam presas num nó inclemente que, entretanto, se fez na garganta. Há uma esperança desesperada de que seja engano, de que o tempo volte atrás e se mude aquele segundo em que tudo foi determinado. Somos homens, e como homens reagimos.

O Francisco era o miúdo de 19 anos adorável, com irmãs adoráveis, filho de pais adoráveis. Para nós, era isso; a simpatia, o carisma e um aluno brilhante, as coisas em que os adultos se fixam, e que são só por si notáveis. Este Francisco, o nosso Francisco, o menino d’oiro dos Pais, teria tido 19 anos bem preenchidos, cheios de sentido, se tivesse sido apenas o jovem atento, delicado e dedicado, o aluno brilhante e responsável que conhecemos.

Sabíamos, afinal, muito pouco. Na partida física do Francisco, apareceram dos mais diversos lados os companheiros das diferentes vidas do Francisco. A equipa de Rugby do CDUP tinha-o como o atleta exigente, determinado, inspirador, companheiro e liderante; a homenagem de todos a uma voz, foi verdadeiramente impressionante. A Tuna Universitária, onde decidiu seguir as pegadas do pai, viu-o passar com inspirado talento pela música e os seus vários instrumentos, com determinação tal, que a dificílima gaita de foles era o seu novo desafio. Os colegas e amigos, que fez desde cedo no colégio que frequentou, mantiveram-se unidos até hoje, tendo o Francisco como pedra angular do grupo. Escolheu por si integrar os movimentos que a Igreja propõe aos jovens, neles tendo sido exemplo de solidariedade, fé e carisma. Fez por estar sempre presente junto dos que mais precisam, dos sem-abrigo que auxiliou, às crianças desfavorecidas a quem dava explicações. Nenhum destes grupos se misturava, eram diferentes mundos onde o Francisco se movimentava, sempre com igual entrega, sempre iluminando com a sua luz interior, com a segurança única dos que têm e vivem a Fé, a Esperança e a Caridade.

De repente, damo-nos conta que o tempo do Francisco não foi o tempo dos homens comuns. Quantas das vidas que conhecemos têm esta intensidade? Quantas vidas longas em anos, deixarão em tanta gente uma marca tão boa e tão profunda como esta vida aparentemente curta? Quantos homens, com vidas conformes com as estatísticas, serão livres ao ponto de espalhar este amor maior por tantas pessoas diferentes entre si? Nós passamos a vida a esfarrapar desculpas, enquanto o Francisco encontrou em 19 anos tempo para tudo. Era demasiadamente ocupado com coisas sérias, talvez por isso, decidiu ter sempre tempo para o que é realmente importante.

Tive a imensa sorte de ter sido assistido espiritualmente pelo Frei Bernardo Domingues a maior parte da minha vida. Entre os seus conselhos sempre sábios, estava uma permanente e intransigente pedagogia do tempo: “O minuto que perdeste, sem lhe dares utilidade, nunca mais o recuperas. Poderás dar bom uso a outro, mas não recuperarás o perdido. Esse é o grande pecado, não preencher o tempo com sentido.” Eu prevaricador, me confesso. O Francisco, por sua vez, viveu exactamente assim, preenchendo o tempo com sentido.

Escolhi este tema, longe da política que vai preenchendo habitualmente estas linhas, porque há acontecimentos que transcendem a rotina das nossas vidas, o foco dos nossos interesses, as nossas áreas de vocação, para nos abanar e nos lembrar que somos, acima e antes de tudo, homens. Há na vida do Francisco uma forte interpelação para pensarmos nas nossas vidas, no sentido que lhes damos, no modo como nos relacionamos com os outros e com o mundo, como dispomos de nós e do nosso tempo, em suma, o que fazemos com os nossos talentos.

Não falarei aqui em detalhe da dimensão transcendental que, enquanto homem de fé, encontrei nesta extraordinária revelação em que o Francisco se tornou. A Igreja tem um grande lastro teológico sobre os Santos Anónimos. O convite é para todos. O amor é para todos. A graça é para todos. Mas alguns não têm espaço para Deus. Por isso, Ele alegra-se enternecido quando encontra uma alma pura que o ame, confie nele e se deixe conduzir pelo seu amor.

A quem não tem fé, fica o exemplo da ética, do rigor, da exigência, da disponibilidade, da solidariedade, enfim, do preenchimento do tempo com pleno sentido. Não é pouco. Nenhuma vida assim vivida é, afinal, curta.