Já aqui falámos várias vezes da tokenização de activos financeiros. Mas a tokenização é suficientemente abrangente para abarcar tudo o que possa ser identificado com uma chave criptográfica, como, por exemplo, a identificação jurídica. Sabendo que uma boa parte da nossa vida passa pelos activos reais, sejam estes móveis ou imóveis, como pode a tokenização aportar a sua extraordinária conveniência e eficiência às suas transacções?
Na verdade, o conceito já é antigo. Uma rápida pesquisa na web revela imensas entidades na DeFi (Finanças Descentralizadas) prometendo este tipo de serviço. É, por exemplo, o caso do ouro. Porém, a DeFi é um ambiente económico não regulado, onde o exercício do direito é aplicado exclusivamente através de posse das chaves criptográficas que representam os token nas DLT. É um ambiente onde a identidade digital é pseudoanónima, e que não carece de identificação jurídica precisamente por não ser regulado, não funcionando, portanto, para os activos reais sujeitos a registo. Para tal, seria necessário colocar estes activos na dependência directa das DLT.
Enfim, não é impossível tokenizar o acesso à centralina de um automóvel ou à fechadura de um imóvel. Mas não é deste tipo de soluções que trata a tokenização de activos reais. Consequentemente, temos de a considerar no contexto da economia incumbente e regulada, até porque só assim poderemos tokenizar sem limitações qualquer tipo de activo.
O imobiliário é provavelmente o activo real mais importante para a maioria das pessoas, pois representa uma boa parte dos seus investimentos e reserva de valor. Alguns países já precederam à tokenização dos registos imobiliários, como é o caso da Estónia e do Dubai, só para dar dois exemplos dos mais significativos. Mas será que adianta?
Na verdade, o registo imobiliário não passa de um ficheiro sob o controlo das instituições do Estado, seja este desmaterializado ou não. E a tokenização desse tipo de registo pode de facto incluir os activos imobiliários em transacções auto-executáveis a cargo das DLT. O problema é que isso não chega.
Para que qualquer transacção seja autoexecutável, é preciso que estejam devidamente tokenizados todos os elementos da mesma, sem excepção, desde a forma como é gerida a identificação jurídica, até aos vários tipos de direito subjacentes à transacção de imóveis e aos agregados monetários envolvidos, bem como a intervenção das instituições do Estado segundo a lei. Quando se trata de imóveis, não há qualquer dúvida que tudo todas as operações têm de ser legalmente reconhecidas. Assim é, aliás, para todos os activos sujeitos a registo, tangíveis ou intangíveis.
Claro que a lei pode e deve ser alterada para aproveitar as inúmeras vantagens da autoexecução ecossistémica. Porém, fica claro que a transacção de activos imobiliários só beneficia se a tokenização for estendida muito para além do simples registo.
Mas atenção, há formas de permitir que os activos reais beneficiem da auto-execução ecossistémica sem precisar que os seus registos sejam tokenizados. Eu explico.
Mais do que uma questão de registo, é tudo uma questão de direito de propriedade. Ou seja, são os direitos que têm de ser tokenizados, e é o exercício desses direitos que tem de ser trabalhado de forma a beneficiar da extraordinária conveniência e eficiência da auto-execução ecossistémica.
Desde há muito tempo que a nossa economia utiliza o conceito de veículo especial com este objectivo. Por exemplo, se um imóvel fizer parte de uma empresa, os direitos sobre a mesma incluem naturalmente os seus activos, incluindo o imóvel em causa.
Muitas têm sido as vozes contra este tipo de abordagem, mas estão erradas, provavelmente por desconhecerem que já é possível tokenizar activos financeiros na União Europeia, incluindo acções de empresas e fundos imobiliários. A ideia de que era possível transportar activos sujeitos a registo para o mundo não regulado da DeFi e das organizações autónomas distribuídas (DAO) esteve sempre condenada à partida. Mas isso não significa que não possamos colher todos os benefícios da tecnologia preparando a economia incumbente para tal, e é por isso que precisamos de aplicar a estratégia nacional para a web3.
Em suma, já podemos tokenizar os direitos associados aos activos reais dentro dos limites que a lei e a regulação hoje permitem. A evolução dessa mesma lei trará mais graus de liberdade, e isso será bom para uma economia que se tornará mais eficiente dando liquidez dos seus activos. Curiosamente, o beneficiário primeiro de uma tokenização mais abrangente é o próprio Estado, com processos mais eficientes para gestão do direito. Todos temos a ganhar. Apetece até perguntar de que estamos à espera.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.