No único Mundial de Futebol em que  Portugal deu cartas  e  esteve  a um passo de vencer, o de 1966, não me lembro de ter visto jogar Garrincha. Recordo-me, mais pela caderneta de cromos do que pela televisão, de Pelé, literalmente trucidado pelo nosso Morais, do guarda-redes Manga, muito responsável pelo primeiro golo português, e do então jovem Jairzinho que haveria de revelar-se mais tarde no Mundial do México.

Soube agora que Garrincha esteve sentado no banco de suplentes. Havia jogado contra a Bulgária  e contra a Hungria, terminando aí a sua participação no mundial britânico e na selecção brasileira. Nessa época, o genial jogador das pernas tortas e bicampeão do mundo havia iniciado a sua fase descendente marcada pela bebida e pelas mazelas físicas.

Ora, tudo isto resulta da leitura da extraordinária biografia de Mané Garrincha, de Ruy Castro, editada agora em Portugal mas já com quase 25 anos, intitulada “Estrela Solitária: Um brasileiro chamado Garrincha”. Extraordinária a duplo título: pela vida extraordinária de Garrincha e pela qualidade da escrita de Ruy Castro. Quase tão boa como essa obra-prima biográfica que é a vida de Nelson Rodrigues, também escrita por Ruy Castro. O registo é similar: uma narração cativante, viva, que solta a anedota e o drama e faz prevalecer o discurso directo.

O biografado é-nos apresentado no verdadeiro contexto social e cultural da época em que vive, sem particulares tons apologéticos mas recheado de pormenores do dia-a-dia. Porém, o que me impressionou, para além do trágico final de Garrincha, foi sobretudo a sua forma de entender e jogar futebol.

Para a época a sua atitude seria rara, mas apesar de tudo plausível. Hoje soa a ficção científica. Não é tanto a questão do estatuto, do prestígio, da fama ou do dinheiro. Ou melhor, da ignorância e inocência com que Garrincha lidava com essas questões. Também isso está a anos-luz dos nossos Ronaldos e Messis. Garrincha encarava o jogo da bola – fosse no Maracanã, no Pacaembu ou nas peladas na sua terra natal – de forma idêntica.

E o impensável acontecia, como naquele Botafogo-Vasco em que Garrincha perante um defesa esquerdo vascaíno continuou em fintas e dribles sucessivos muito para além das linhas de jogo, já na pista de acesso ao exterior. E só parou porque o árbitro lhe chamou a atenção. Como se o seu único objectivo no futebol fosse fintar uma e outra vez o adversário esquecendo-se dos  golos.

Em  outra situação,  num particular entre o Brasil e a Fiorentina,  Garrincha fintou toda a defesa italiana, guarda-redes incluído, e entrou tranquilamente com a bola na baliza. Não festejou sequer. Agarrou a bola com as mãos e transportou-a para o centro do terreno para poder rapidamente recomeçar o que  verdadeiramente lhe dava prazer:  driblar os adversários!

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.