Há 23 anos, no discurso do 10 de Junho de 1997, o escritor António Alçada Baptista, em cerimónias havidas na Covilhã, sua cidade natal, perguntava-se e bem se ainda fazia sentido uma letra do hino nacional tão bélica. Disse-o assim: “A própria letra do hino nacional não me parece adequada à nossa civilização, não pode ter nenhum eco no coração da juventude evocar a vitalidade da Pátria, gritando ‘às armas’ e propondo-nos ‘marchar contra os canhões’”. Disse-o 23 anos depois de Abril.

Passado outro tanto tempo, uma geração inteira, sobre Abril, volto ao assunto. Incomoda-me ouvir o meu filho mais novo, com os seus 10 anos, fazer ecoar “Às armas, às armas!/Pela Pátria lutar/Contra os canhões marchar, marchar!” sempre que os futebóis o entusiasmam a andar aos pulos pelo apartamento. A minha geração não foi à guerra e esse é um dos legados mais importantes do 25 de Abril.

A nação, entendida nos seus laços de comunidade, fez uma escolha colectiva: não à guerra colonial, não à guerra como solução, não à potência armada; em vez disso, o compromisso pela paz, mesmo as forças armadas acima de tudo focadas em missões de paz. Se tem de estar grata por isto, a minha geração tudo deve fazer civicamente para que as gerações que criou possam continuar a fruir de Abril dessa maneira.

Mas não é apenas a marcha para a guerra que perturba no hino. Sob essa superfície mais áspera de uma canção que promete a guerra, e que me leva a fazer cara fechada ao meu filho e dizer-lhe “menos, menos, por favor mais baixo”, mas sem o conseguir mandar calar, pois, a par da bandeira, é afinal um dos símbolos nacionais, há ainda o âmago da mensagem sobre o que, de acordo, com aqueles versos, nos devia mover enquanto comunidade nacional: “Levantai hoje de novo/O esplendor de Portugal!” Que esplendor?

Se levantar de novo o esplendor é ser de novo a potência colonial a que os ingleses puseram termo com o ultimato, do Portugal tão grande que ainda em 1934 justificava a frase propagandística “Portugal não é um país pequeno”, com franqueza, nunca foi isso que me moveu como cidadão português, e menos quero que isto mova os meus filhos e os dos outros. Até porque sei que nem todos os concidadãos se revêem nesse “esplendor” que os bretões foram arruinando. Por exemplo, os filhos desse passado que vieram de África há duas, três ou sete gerações, pouco importa, pois nasceram cá ou chegaram cá e desejavelmente poderão morrer neste país depois de uma vida de oportunidades tão realizadas como as de todos os outros.

É esse  o compromisso que nos liga como comunidade nacional. Não vontades de restaurar “esplendores” passados, mas artigos da Constituição como este, logo o primeiro: “uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.”

Em 1974, esse compromisso materializou-se nos “3 D”,  descolonizar, democratizar, desenvolver; em 2020 significará os novos desafios que se perfilarem — por exemplo, e no imediato, vencer a Covid-19 sem admitir que a emergência sirva de pretexto para debilitar essa sociedade livre, justa e solidária que a Constituição promete. Ou, a maior prazo, uma organização económica menos social e ambientalmente tóxica, onde conhecimento e convívio se apoiem reciprocamente em novas formas de desenvolvimento.

Mas fosse esse esplendor ou outro motivo passado, a fixação da razão de ser da comunidade nacional num tempo que não é o nosso, que simplesmente herdámos, é má porque, fora todas as outras razões, é incapacitante. Condenar-nos a sermos filhos de uma memória é limitar a capacidade de sermos, no nosso tempo, geradores de memória. Este desequilíbrio não é bom também pelas consequências que dele se seguem. Sermos um país identitariamente tão dependente de um passado, de forma tão desproporcionada, torna-nos incapazes de criticar o seu passado sem logo nos sentirmos em causa.

Esta incapacidade acaba por prender-nos ao passado, até mesmo na crítica, pois um passado que não se deixa debater limita-nos à oposição dura entre culpa e negação de culpa, que é uma outra prisão no passado. E assim, a fixação no passado reforça-se ao tornar o presente refém de um conflito sobre o passado, um passado sobreinvestido porque a identidade do projecto nacional assim o determina. Este entrincheiramento no passado é um atavismo nacional que dificulta, de facto, o direito das gerações a moldarem o significado do seu tempo e a nele se inscreverem.

Portanto, a pergunta de António Alçada Baptista tem de ser retomada: faz ainda hoje sentido um hino que, no fundamental, responde com orgulho ferido a um trauma que assim mantém vivo, como se aqueles canhões ainda existissem e a ameaça fosse real? Nem o que estava ali em causa defender subsiste materialmente — ou seja, a integridade do território colonial —, nem faria ainda qualquer sentido continuar a defendê-lo hoje.

No máximo, emula-se o trauma, o seu estado de espírito, como acontecia no futebol, espécie de má desculpa diante da derrota, até que finalmente a selecção ganhou um campeonato europeu. Como se vencer um jogo de futebol fosse derrotar uma ameaça real. Este não é um imaginário que devamos desejar. Porque estigmatiza os outros diante dos quais cantamos aquelas palavras, porque nos menoriza na medida em que não evitamos encarar no adversário um inimigo, ainda que simbólico, emulado de um passado traumático.

A letra do hino nacional exprime valores e imaginário que já não são os do nosso tempo, e que contradizem outros valores e imaginário que temos na Constituição e que, de uma maneira ou de outra, nos empenhamos em transmitir às gerações que nos seguem. Já nem a história futebolística do país precisa de tanto.

O hino nacional tem hoje muito mais importância histórica do que actualidade. Os versos bélicos e de restauração do esplendor se não foram um grito do Ipiranga nacional, estiveram lá perto. Foram um grito de libertação equiparável, que moveu fundo uma revolta e uma vontade de restauração da dignidade que justificou a maior mudança de regime da história do país, a transformação numa república. “A Portuguesa” foi o canto patriótico da revolta do 31 de Janeiro, logo no ano seguinte ao ultimato e hino nacional quando consumada a República, passando inalterada pelo salazarismo e pelo 25 de Abril.

Não é errado dizer que o hino nacional coincide quase em absoluto com a vontade de república. Os versos de “A Portuguesa” foram escritos por Henrique Lopes de Mendonça, militar de carreira e homem de letras, que tem, aliás, um discreto busto no jardim da Praça José Fontana, diante do Liceu Camões, em Lisboa. Um hino de dignidade ressentida que se revolta, fez seguramente sentido num tempo histórico de mudança de regime, decisivo para o país que somos hoje. A sua persistência ao longo de mais de um século demonstra-o, tanto quanto é possível falar de demonstração em história.

Mas hoje vivemos num regime consolidado, que importa afirmar assim, convictamente ligado aos valores de uma Constituição, sem ameaça exterior. O hino que os nossos filhos cantam como símbolo da comunidade nacional deve exprimir a serenidade do regime e não a sua ameaça. Essa é a reflexão sobre a qual importaria não saltar mais uma geração.

O amor por um país tem muitas fontes, desejavelmente umas universais outras singulares, e sem conflito entre ambas. O afecto por valores de convívio universalizáveis como aqueles com que a Constituição define a República Portuguesa – liberdade, justiça e solidariedade. Mas o afecto universal precisa da singularidade como uma utopia precisa de um corpo vivo – as singularidades que quem cá vive realiza, algumas mais extraordinárias outras menos, a espessura de sentido do património do país e da sua língua, a cultura que nele e nela se geraram, a poesia, a literatura, a música, e também o extraordinário que é simplesmente oferecido, a beleza natural, os arranjos entre natureza e geografia humana, as aldeias e as cidades.

Um hino pode cantar tudo isto e em tudo isto insuflar imaginário para inspirar futuro. Não faltam motivos cantáveis de patriotismo constitucional, geográfico, cultural do país. Até uma ecologia de todos os seus espaços e tempos. E se pode, deve. A bem do país, a bem de quem nele faz o seu sentido de vida.

Mas para isso há que identificar e superar um complexo, de que a inquestionabilidade dos versos do hino são sintoma. Só esse complexo explica por que é que nem no tempo de uma geração, nem depois dos 23 anos passados sobre a revolução de Abril terem dobrado, se questione institucionalmente um assunto que não devia ser do passado, mas do presente e do futuro. Se não tivermos uma palavra sobre o que cantamos quando cantamos o hino nacional em que medida somos soberanos?

A ameaça à soberania deixou de ser externa, mas permanece internamente, na verdade, garantindo à desigualdade – essa chaga nacional multifacetada – exprimir-se também dessa forma. Não é deixar o passado no passado, essa é a parte consensual, mas libertar o presente e o futuro. Isto é válido para o hino, de modo a honrar uma reflexão encetada por António Alçada Baptista, mas longamente interrompida como um tabu. E é valido para uma representação de 2017 do Padre António Vieira em estátua erigida no coração de Lisboa que não conseguiu sair do cânone oitocentista e da sua visão de mundo — que nem era efectivamente a do jesuíta, anterior, nem a que nos liga hoje como comunidade nacional.

Ironicamente, mas não por coincidência, também os versos de “A Portuguesa” são bem expressão dessa visão de mundo oitocentista. Basta seguir as quadras que não ficaram no hino e lá encontramos o espírito de supremacia europeia que deveria ser missão do país – “Brade a Europa à terra inteira” – e que muito coerentemente teria Padre António Vieira, ou uma sua representação anacrónica, como porta-estandarte. O tabu é o mesmo.

Portanto, por três grandes razões – nem a guerra, nem um certo “esplendor”, nem a fixação no passado –, esta letra do hino nacional serve bem o país de que é símbolo. A história é feita de contradições, mas também de não nos conformarmos a elas, ir dissolvendo-as, até para ganhar espaço para novas. Duas gerações depois de Abril já era tempo de resolvermos esta.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.