A reacção ao caso do juiz Neto de Moura exibe o reconhecimento da importância dos tribunais na vida pública e o crescente escrutínio sobre as suas decisões. Mediatizada por casos polémicos, degradada por teorias de cabala e por decisões de manifesta má qualidade, a magistratura é uma das últimas áreas a sofrer pressão pública para prestar contas. Mas, tarde ou cedo, ela terá que reformar a sua regulação e a comunicação das suas decisões a um público mais exigente e qualificado. Isso é matéria muito complexa, que precisa de abordagens sensatas e bem pensadas, que não cabe discutir aqui por agora.
Independentemente do carácter técnico da decisão do juiz desembargador, os textos da sua fundamentação causam um justíssimo protesto social. Ainda por cima, por ser reincidente na menorização dos crimes de violência doméstica e da dor das vítimas, o caso torna-se grave e faz da advertência do Conselho Superior de Magistratura uma anedota. Já pediu escusa em relação a casos deste tipo que doravante apareçam. Mas o dano à credibilidade deste modelo de regulação está feito.
Neto de Moura foi exposto porque as suas sentenças estão saturadas de preconceitos e de opiniões pessoais. E também porque há quem promova a visibilidade do problema da violência doméstica. Só que este caso é muito maior do que a possível misoginia de um juiz. E não se resolve atacando os magistrados individuais com quem se discorde ou que afectem a nossa agenda.
O problema é sistémico e reside no peso das visões pessoais dos magistrados na aplicação da justiça. Mesmo no caso de magistrados mais discretos, a sua mundividência e formação interferem na administração da justiça, com impacto na organização social e nas nossas vidas.
Uma área que me preocupa especialmente são os tribunais de família e menores. Chegam lá, quase sempre, famílias em situação de fragilidade e de litígio severo: é o futuro dos filhos que está em causa, num processo contaminado pela separação.
Pela sua natureza, por envolver crianças e jovens, pela interacção com várias entidades como a Segurança Social, a CPCJ e outros tribunais, os processos são morosos e sujeitos a abordagens casuísticas.
Sob a égide da busca do superior interesse da criança, estes tribunais combinam a ausência de modelo preferencial para o regime de guarda e de visitas com flexibilidade processual. A visão pessoal dos juízes sobre a organização familiar torna-se por isso determinante.
Ora, se encontramos um Neto de Moura em áreas com um quadro definido, como o direito criminal, o que esperar do direito da família e das crianças, onde há latitude interpretativa para abordar as situações concretas?
O actual quadro legal permite flexibilidade para a guarda e residência das crianças. Seria de esperar que o cenário das famílias após a separação fosse diverso. Pelo contrário, a solução é quase sempre criar uma família monoparental feminina.
A PORDATA revela que, entre 1992 e 2018, houve um aumento estrondoso de 130% de novas famílias monoparentais (de 203 mil para 460 mil), mas a prevalência feminina ficou inalterada (87% são femininas, 12,9% são masculinas). Na verdade, houve até uma pequena redução das famílias monoparentais masculinas, que passaram de 14,5% para 12,9% nesse período.
Estes números esmagadores reproduzem um modelo arcaico de parentalidade: o homem, à distância, como ganha-pão; a mulher, centrada no cuidado infantil. Mas a realidade social desmente o modelo. Portugal tem uma altíssima taxa de feminização do mercado de trabalho. E esta solução não só espartilha as famílias como conduz as mulheres a uma especialização de género que afecta a sua progressão laboral e salarial e a reconstrução da sua vida afectiva e familiar.
Também para as crianças, estes são processos conturbados em que a guarda, a residência e o convívio com os progenitores são contaminados pelo divórcio. A ruptura do casal transforma-se na ruptura com um dos pais. Isto coloca-as sob uma enorme pressão e numa situação de conflito de lealdades com efeitos traumáticos.
Os processos de separação afectam igualmente os homens. A reivindicação de competências parentais e de um papel igual na vida dos filhos são elementos-chave na sua valorização pessoal e na manutenção de uma vida familiar, que influencia o seu bem-estar e a sua estabilidade psíquica e emocional.
Para além disso, a rotação geracional acelerou a mudança de mentalidades: a redefinição da masculinidade contemporânea passa pela partilha de responsabilidades parentais. Esta alteração de mentalidade é notória e geral, como revela o estudo recente do Observatório das Famílias e das Políticas de Família em que mais de metade dos participantes (56,7%) reconhece aos homens a capacidade para prestar cuidados a crianças pequenas.
Mas a ausência de um princípio legal de igualdade parental (salvo situações excepcionais) tornou a guarda e a residência dos filhos numa questão em disputa, alimentando o conflito entre o ex-casal. Em condições normais, o debate deveria centrar-se na forma de aplicar o princípio. Só que o ónus da defesa da partilha é colocado sempre sobre os ombros de uma das partes. Torna-se elemento de litigância e não ponto de partida.
Acresce que a prática judicial que regulou as novas famílias monoparentais não acompanhou a revolução nas relações entre pais e filhos das últimas décadas. A tal flexibilidade de soluções não impediu a preferência esmagadora dos tribunais por famílias monoparentais femininas, mesmo quando os pais pedem a guarda ou a residência alternada. Bem pelo contrário, essa flexibilidade facilitou a promoção da monoparentalidade, que decorre com ‘naturalidade’ das visões pessoais dos magistrados sobre como se organiza uma família depois de um divórcio.
Ora, as declarações incríveis de Neto de Moura são um testemunho fortíssimo da razão pela qual o regime de guarda e residência de crianças com pais separados não deve ficar sujeito ao mero ideário pessoal de um qualquer juiz. Não por causa das ideias deste juiz em concreto, mas pela exibição do insustentável peso que as opiniões pessoais de um juiz podem ter nas nossas vidas e, neste caso, nas vidas dos nossos filhos.
Um tribunal que não creia num modelo de igualdade parental e de residência alternada não precisa sequer de sentenças exuberantes. Basta não a promover, deixar que o processo se arraste e que a situação de redução de contacto se consolide. Sem um modelo preferencial, estão isentos da sua aplicação e da fundamentação quanto à sua recusa.
Foi por isso mesmo que apoiei a petição a favor da presunção jurídica da residência alternada promovida pela Associação Portuguesa para a Igualdade Parental e Direitos dos Filhos, logo no seu lançamento. O documento entrou na Assembleia da República, em Julho de 2018. Apesar da oposição de algumas organizações feministas, que associaram de forma linear homens e agressores, a resposta da sociedade foi muito clara no apoio à iniciativa.
A Procuradoria-Geral da República deu um apoio reforçado, indicando que a alternância entre a casa de ambos os pais deveria ter um estatuto privilegiado sobre outras soluções. E até o CSM propôs a inscrição do princípio da residência alternada na legislação.
Mas ao fim de mais de sete meses, o processo arrasta-se na AR sem conclusão e sem iniciativa legislativa. Arriscamo-nos a ver o final da legislatura sem qualquer alteração à lei. E deixaremos nas mãos de um totoloto viciado, em que a resposta é quase sempre a mesma, o futuro das famílias e dos filhos. Do que é que estão à espera os deputados deste país?
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.