O orçamento para 2020 está já aí ao virar da esquina e, com ele, regressa o espectro das coligações negativas.

Quando o sistema de governo português foi desenhado, em 1976, e depois parcialmente redesenhado, em 1982, procurou apoiar-se a constituição de governos minoritários (ou, mais rigorosamente, de maioria relativa). É por isso que os novos governos não precisam, para entrar em funções, de obter a aprovação do seu programa na Assembleia da República. O programa do governo tem de ser discutido, mas não precisa de ser votado.

É claro que um partido da oposição pode sempre propor uma votação de rejeição do programa. Aí os governos minoritários têm um problema, que é o da formação de uma coligação negativa. Foi o que aconteceu ao segundo governo de Passos Coelho. A coligação negativa que o derrotou, porém, tornou-se depois numa coligação positiva sui generis, que por isso mesmo ficou conhecida por “geringonça”.

Na mente dos constituintes de 1976 e 1982, a ameaça mais séria à estabilidade dos governos minoritários seria mesmo a das moções de censura. E, quanto a estas, não havia mesmo nada a fazer. Se o governo é politicamente responsável perante a Assembleia da República, os deputados têm inevitavelmente de ter a possibilidade de o demitir através de uma votação por maioria absoluta.

O governo minoritário de Cavaco Silva caiu assim, em 1987, às mãos de uma moção de censura proposta pelo PRD e aprovadas em uníssono pelos demais partidos da oposição.

Como nas eleições subsequentes o PSD teve maioria absoluta e o PRD quase desapareceu, os partidos políticos aprenderam a lição. Os portugueses não gostam de instabilidade e punem quem a promove sem uma razão muito forte. Daí em diante, propostas por pequenos partidos contra governos suportados por maiorias absolutas, as moções de censura tornaram-se gestos teatrais, cuidadosamente encenados apenas para mostrar serviço.

Daí em diante, Portugal teve mais três governos minoritários: os dois de António Guterres e o segundo de José Sócrates. Nenhum deles caiu por efeito de uma moção de censura. O primeiro chegou ao fim da legislatura. Os outros dois terminaram por demissão dos respetivos primeiros-ministros: Guterres porque ficou preso no pântano; Sócrates porque caiu no abismo.

Durante o período que estiveram em funções, porém, estes governos enfrentaram por várias vezes o espectro das coligações negativas – que é também, diga-se, a tentação do governo de assembleia.

Guterres viu a oposição toda juntar-se para aprovar leis a eliminar portagens em autoestradas e a alargar o número de vagas no ensino superior. Sócrates experimentou o mesmo a meio da guerra da avaliação dos professores. (Há bem pouco tempo, António Costa esteve também à beira de ver os seus próprios parceiros de coligação juntarem-se à oposição para aprovar a reposição do tempo de serviço dos professores).

As coligações negativas mais temidas pelos governos minoritários são, porém, as que respeitam ao orçamento de Estado. Guterres ameaçou tão insistentemente com a demissão que muitos portugueses ainda hoje estão convencidos que a rejeição do orçamento tem como consequência necessária a queda do governo – quando, constitucionalmente, apenas obriga o governo a apresentar uma nova proposta de orçamento.

António Costa, que decidiu descontinuar a “geringonça”, pode ter agora um problema sério pela frente chamado IVA da eletricidade. Por um lado, ameaçar com a demissão do governo parece muito prematuro, considerando que acabou de entrar em funções. Nem poderá concretizar a ameaça, tanto mais que só poderia haver eleições em março do próximo ano. Por outro lado, dificilmente contará com o apoio dos portugueses para continuar a cobrar 23% de IVA num serviço de primeira necessidade. E, por fim, se o brutal aumento do IVA da energia de 6 para 23% não pode ser revertido, mesmo passados quatro anos, então é porque algumas medidas da troika eram mesmo necessárias.