Declaração de interesses: há muitos anos fui advogado do Banco Privado Português, ainda este banco estava a iniciar as suas actividades bancárias, quer na área da banca de investimento, quer na banca de private banking.

Tal não me impede de ter uma visão isenta e imparcial da situação gerada pela evasão do então seu fundador e presidente do Conselho de Administração, João Rendeiro, ao cumprimento de várias penas de prisão efectiva, embora ainda não transitadas em julgado.

E o meu veredicto é que a culpa é do sistema judicial. O mesmo que é tão lesto a decretar prisão preventiva e a aplicar outras medidas de coação adequadas ao sempre recorrentemente alegado perigo de fuga é o mesmo que ingenuamente deixa escapar um arguido já condenado em pena efectiva de prisão.

Já o disse, e repito, sou dos que defendo o princípio sacrossanto do direito constitucional e penal da presunção de inocência do arguido até à decisão condenatória transitada em julgado e de que prefiro cem culpados em liberdade do que um inocente preso.

João Rendeiro foi condenado. É, portanto, culpado à luz dos princípios e garantias constitucionalmente atribuídas – e exercidas – ao arguido. E não se pense que as garantias são muitas ou excessivas. Só quem passa por essa via sacra é que percebe o quão fracas tais garantias são e a enorme fragilidade do individuo acusado face ao poder judicial do Estado que chega até pender para investigar. Um exemplo simbólico e que vem da ditadura é o Ministério Público ter um lugar cimeiro no tribunal, acima das partes, do defensor do arguido. Porquê? Para mim não faz sentido nenhum.

João Rendeiro invoca a legítima defesa contra a injustiça da justiça. Não tem razão. Não há essa figura no nosso direito para reagir contra decisões judiciais. A auto-tutela funciona precisamente quando a Justiça não está presente e a ameaça é ilegal e iminente. Ora, o arguido defendeu-se em tribunal, com o due process, e foi condenado pelo sistema judicial. Não há lugar à legítima defesa.

O tribunal, rectius, o Ministério Público que tem o poder de requerer a revisão das medidas de coação, poderia e deveria ter promovido a revisão das medidas de coação de um arguido condenado. Não faz nenhum sentido manter o termo de identidade e residência a um arguido já condenado, tendo em consideração o estatuto e as circunstâncias pessoais e patrimoniais do arguido em apreço. Assim como não faz nenhum sentido as detenções mediáticas de alguns arguidos e prisões preventivas de outros.

Não há um arrimo, um critério, uma ponderação e acima de tudo bom senso nesta nossa justiça penal.

Apesar de tudo, Portugal é um estado de direito. Os tribunais são independentes dos outros órgãos de soberania e existem garantias dos arguidos no processo penal, se bem que algumas vezes estas garantias são postergadas. Não me consta que no caso concreto o tenham sido. Bem pelo contrário, tendo em consideração a medida de coação aplicada…

Agora, o ser humano é um ser naturalmente livre. Todas as pessoas conhecem a célebre história do francês Henri Charrière, “Papillon”, condenado por um crime de homicídio, que, na década de 1940, escapou de uma terrível prisão na Guiana Francesa e todas as pessoas simpatizam com tal fuga. Ou como diz o existencialista Jean Paul Sartre, o homem está condenado a ser livre. Tenho mais respeito por Homens (o H maiúsculo é intencional) que se entregam voluntariamente à justiça para cumprir as suas penas de prisão. Agora, dar a oportunidade ao bandido para fugir e esperar que ele não fuja é pura ingenuidade, para não dizer incompetência!

João Rendeiro fugiu à justiça e é um foragido. A sua pena é ter de andar escondido num país sem tratado de extradição e ter de estar sempre a olhar para os tratados que esse país de refúgio vai celebrando. Sem mobilidade e com o rótulo de foragido à justiça. Como alguém já disse, agora que o deixaram fugir, que não o deixem regressar porque é um fora-da-lei e a reincidência é sempre possível.

O culpado dessa fuga é, não obstante, o nosso sistema judicial. Naiveté!

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.