Factos: o juiz Rui Rangel é arguido do processo Operação Lex, no qual é investigado (assim como a sua mulher, Fátima Galante, também ela magistrada) por corrupção/recebimento indevido de vantagem, branqueamento de capitais, tráfico de influências e fraude fiscal. No seguimento de uma investigação ao Benfica, tinha-se tornado suspeito de intermediar decisões da Justiça favoráveis aos arguidos no caso. Por isso, foi suspenso preventivamente de funções em fevereiro do ano passado. Em 9 de novembro, essa situação foi confirmada pelo Conselho Superior da Magistratura (CSM). O Supremo Tribunal de Justiça (STJ) reconfirmou o impedimento, já este ano, por estarem em causa razões objetivas, de interesse e ordem pública da função judiciária.

Fazia sentido: um juiz investigado não podia, ou não devia, estar no ativo de um tribunal (da Relação de Lisboa, neste caso) por razões de prestígio e credibilidade do cargo. Pareceu a toda a gente uma boa decisão. Já bastava a curiosidade de Rui Rangel ter despachado a única vitória de José Sócrates nas dezenas e dezenas de recursos da chamada Operação Marquês.

Por tudo isto, é natural a perplexidade que rodeia a notícia agora conhecida: Rangel, regressado ao trabalho a 23 de julho, tem já nas mãos um recurso envolvendo suspeitas de corrupção e fraudes no Serviço Nacional de Saúde (SNS), a Operação O Negativo, ou Máfia do Sangue, que nasceu da Operação Marquês, e na qual se investigam suspeitas de obtenção, por parte da Octapharma, de uma posição de monopólio no fornecimento de plasma humano inativado e de uma posição de domínio no fornecimento de hemoderivados a diversas instituições e serviços que integram o  SNS. Só falta recordar que o principal arguido destes processos é Lalanda de Castro, o mediático ex-patrão de José Sócrates.

Perante a surpresa geral, o CSM avançou com a explicação: acabara o tempo limite para a suspensão do juiz no âmbito do processo disciplinar. É a lei!

E é assim que estamos. Ou seja, estamos mal, a Justiça está mal.

Não é admissível, do ponto de vista da confiança dos cidadãos no sistema, que a um juiz nestas condições seja permitido voltar a trabalhar, como se sobre ele não se abatesse a pior das suspeitas que pode abalar o bom nome de um magistrado: ser corrupto. Mandariam as boas práticas que enquanto se mantivessem essas suspeitas, e até Rui Rangel ser dado como inocente ou culpado, o juiz se mantivesse afastado de funções. Parece que o regulamento não o permite – o que é um bom pretexto para o rever, precavendo casos futuros.

Neste caso, resta testar o bom senso do juiz Rangel.

É claro que nestas circunstâncias ele está a ser prejudicial à imagem da Justiça. Deveria pedir escusa do processo, de apreciar qualquer processo, e abdicar do direito que formalmente lhe assiste de trabalhar, por ausência de legislação e regulamentos adequados. Não pode fingir ignorar, sendo ele Juiz, que está sob suspeita. Por muito que proteste a sua inocência, ela ainda não foi certificada. Tem o dever moral de contribuir para que os cidadãos acreditem, e não que desconfiem.

Gostaria, em função da imagem que dele conservo, de contactos pessoais mantidos no exercício da profissão de jornalista, de o ver escolher esse caminho. Seria digno. E, sobretudo, perante a falência dos regulamentos, contribuiria para a dignificação da Justiça. Espero pela revelação dessa coragem.