A crise que o país atravessa causada pela Covid-19 trouxe à tona as fragilidades do país para enfrentar este tipo de situações, apesar de estarmos avisados para a possibilidade da sua ocorrência.

São vários os documentos do Governo da República e do Ministério da Defesa Nacional (MDN) a alertar para o perigo e para a possibilidade de ocorrerem pandemias. Perante essa retórica melodiosa, importa perceber o que foi feito pelas autoridades para acautelarem essa ameaça à segurança nacional.

O esforço coletivo que temos de fazer como país para superar este desafio, não pode nem deve ser pretexto para abdicarmos de um pensamento crítico construtivo. O tema que trago à colação prende-se com a ausência de decisões dos dirigentes nacionais sobre o Laboratório Militar de Produtos Químicos e Farmacêuticos (LMPQF), responsável pela falta de uma reserva estratégica de medicamentos e equipamentos, entre outros assuntos.

A fundamentação desta acusação será feita com base apenas num caso: as conclusões do estudo do grupo de trabalho interministerial (MDN e MS) realizado em maio de 2017, sobre três temas: (1) Determinar as condições do LMPQF para tratar industrialmente o plasma; (2) Identificar os medicamentos que poderiam ser produzidos pelo LMPQF, em particular aqueles que deixaram de ser produzidos pela indústria farmacêutica devido ao seu baixo custo; (3) Identificar as condições necessárias para que o LMPQF garanta a constituição e gestão de reservas estratégicas.

Apesar do consenso generalizado suscitado pelas propostas do grupo de trabalho, até à data nenhuma foi implementada.

A primeira prendia-se com a criação em Portugal de uma fábrica de fracionamento de plasma, dotando o Estado de autossuficiência e capacidade produtiva. Várias razões justificavam essa opção. Para além dos contornos estratégicos e de soberania, era uma solução economicamente atrativa (insuficiente plasma a nível mundial, crescente procura de plasma pelos países emergentes, aumento do consumo de medicamentos derivados do plasma, etc.) apoiada pela União Europeia.

São imensos os benefícios para o país (importação de tecnologia de ponta, desenvolvimento de conhecimento científico, fornecimento nacional mesmo durante períodos de rutura de stock, etc.), nos quais se inclui a capacidade exportadora.

Ao não existirem em Portugal capacidades instaladas na área de produção de medicamentos biológicos direcionadas para o fracionamento de plasma, o LMPQF é a única organização nacional, de cariz público, que congrega o conhecimento farmacêutico na área industrial e setores contíguos com orientação produtiva. Ao que acresce o conhecimento científico assente no quadro de oficiais farmacêuticos do Exército, capaz de responder às necessidades específicas do fracionamento de plasma. Mas nada foi decidido.

Por outro lado, o grupo de trabalho identificou uma lista de medicamentos, que pelo seu baixo custo ou  baixa procura deixaram de ser produzidos pela indústria farmacêutica, dando origem a lacunas terapêuticas, e que deveriam passar a ser produzidos pelo LMPQF. Assegurava-se, desta forma, o direito aos cuidados de saúde de todos os cidadãos e, também nesta vertente, criava-se capacidade exportadora, uma vez que os medicamentos identificados não estão disponíveis em muitos outros países.

Para tornar isto possível, era necessário investir cerca de 17 milhões de euros para modernizar um processo de fabrico da década de 60 do século passado, que praticamente não sofreu atualizações. Derivado dos desinvestimentos, a sua capacidade produtiva foi-se degradando e esteve 25 anos sem poder contratar pessoas.

Impõe-se sublinhar, que os medicamentos fabricados no LMPQF não se destinam exclusivamente às Forças Armadas, mas acima de tudo a entidades tuteladas pela área da Saúde, cuja lacuna terapêutica provoca um impacto negativo nos cuidados prestados aos doentes, permitindo dessa forma satisfazer as necessidades na área do medicamento e salvaguardar o interesse público. Também sobre este assunto houve um consenso alargado, mas nada foi decidido.

O estudo apontava ainda para a criação de um Sistema de Gestão da Reserva Estratégica de Medicamentos (REM), em que cabia ao LMPQF garantir a constituição e gestão de reservas estratégicas destinadas a fazer face a necessidades de abastecimento de medicamentos decorrentes de situações de crise grave, e definir o respetivo sistema de gestão. Seria assim possível fornecer um acesso rápido e fiável de artigos médico-farmacêuticos às vítimas ou doentes atingidos, e permitir um tratamento ou profilaxia em tempo útil.

A REM visa garantir a disponibilidade imediata de artigos considerados críticos que podem ajudar a mitigar os efeitos de uma catástrofe natural, cenários de trauma generalizado, infeções bacterianas ou virais que resultem de contaminações acidentais ou intencionais, cenários de pandemias ou de ameaças nucleares, radiológicas ou químicas.

As capacidades de apoio sanitário das Forças Armadas deviam constituir uma reserva para situações de catástrofe e calamidade, e outras ameaças não-convencionais à saúde pública. Também sobre esta matéria nada foi decidido.

Se existisse essa reserva estratégica de medicamentos e equipamentos, não teríamos assistido, por exemplo, à aflição de enfermeiros a comprar máscaras para aplicar pesticidas em cooperativas agrícolas, a preços exorbitantes, por não existirem no mercado as máscaras adequadas, ou à angústia que se vive hoje nos hospitais com o racionamento de equipamentos de proteção individual para enfrentar a Covid-19.

É inaceitável a ausência de decisão sobre a proposta da REM feita há três anos pelo grupo de trabalho. Não se pode deixar passar em vão.

O LMPQF é um ativo estratégico do país, cuja importância não se esgota nos aspetos mencionados. É também um instrumento importante da política externa do Estado, como ficou bem patente no apoio nacional de emergência a Moçambique, após o furacão Idai (2019). Foi o LMPQF, que, em tempo recorde, preparou toda a logística farmacêutica para as Forças Armadas, INEM e Cruz Vermelha e preparou a purificação da água no local, com o apoio dos fuzileiros e da GNR.

O LMPQF é mais uma opção de apoio à ajuda internacional, no domínio não cinético, à disposição dos decisores políticos, permitindo compensar a ausência de intervenções cinéticas politicamente mais arriscadas.

A miopia política e a impreparação levaram um ministro da Defesa Nacional a decretar o encerramento do LMPQF. Em boa hora essa decisão infeliz foi revertida, graças à diplomacia e persuasão empenhada de alguns militares. O Laboratório Militar é uma estrutura desenhada para servir os portugueses, para dar resposta às complexas missões e desafios que se colocam ao país no âmbito da Saúde nacional. E claro, capaz de suprir as necessidades do Exército e das Forças Armadas.

Como se o que foi dito não bastasse, o LMPQF funcionou como almofada financeira da ADM, adiantando o dinheiro para adquirir equipamentos para os deficientes das Forças Armadas, responsabilidade que o Estado português alijou e não assumiu, contribuindo para uma situação financeira complicada que dificultou a sua modernização.

A importância estratégica da sua missão exige a adoção de uma estrutura capaz de responder às exigências dos desafios. É inconcebível que o LMPQF seja tratado como mais uma unidade do Exército, sem autonomia financeira. Das três opções possíveis (Instituto Público, Laboratório do Estado ou Unidade do Exército) tinha de se escolher a pior, a única em que não tem autonomia financeira e que, por isso, é menos flexível e célere na resposta.

Ganhávamos todos se os decisores se conseguissem libertar dos conhecidos complexos ideológicos que têm assistido a muitas das suas decisões.

A inação sobre a REM e sobre a capacidade de dotar o país de uma capacidade produtiva que sirva o interesse dos cidadãos independentemente das circunstâncias, são responsáveis pelo improviso que hoje tenta mascarar os graves constrangimentos a que estamos a assistir no combate à Covid-19. E quando tudo acalmar, continuará a ser um crime destruir uma organização ímpar como o LMPQF, que tanto custou a formar. Mais haveria a dizer.