Aumentar impostos sobre combustíveis fósseis ou incentivar o uso de transportes públicos e de motores eléctricos em viaturas próprias são medidas importantes no caminho para a descarbonização e para uma economia verde. Mas, sem que haja enquadramento mais amplo, estão muito longe de ser suficientes.

Há duas ordens de razões para chamadas de atenção. Primeiro, estas políticas não podem ser levadas a cabo sem atender às desigualdades, seja de rendimento, seja territorial. Os carros eléctricos não são para todas as bolsas e o diesel cada vez mais caro sufoca quem tenta sobreviver, sem alternativas e com escasso rendimento, no interior do país.

Segundo, se é para em seguida dar largas à pulsão extrativista — como é o caso da ânsia crescente, neste Governo, de concessionar explorações de lítio em minas a céu aberto —, aquelas medidas não são mais do que o tributo que a boa consciência cívica paga pela sua indulgência. Estas duas ordens de razão exigem atenção crítica, protesto e acção.

Quanto à desigualdade, a política de passes com que o Governo se comprometeu, incentivando fortemente o uso de transportes públicos nas regiões metropolitanas de Lisboa e Porto, constitui um esforço financeiro muito louvável. Mas, também por razões de igualdade de oportunidade, era preciso que o Estado olhasse para aqueles que teimam em continuar a viver no interior do país, não desistindo do seu povoamento.

Era preciso que o carpinteiro e o agricultor a quem o Estado pede os mesmos impostos, vissem comparticipados a sua “van”/furgão ou o seu tractor eléctricos de forma a que, pelo menos, não lhes ficassem mais caros do que os modelos equivalentes a diesel. Para isso, era também preciso que o Estado não receasse discriminar positivamente na atribuição de benefícios, por exemplo a utilização sem custos de auto-estradas no interior para os que aí residem ou trabalham.

O princípio do utilizador-pagador sem qualquer diferenciação é um dos mais iníquos embustes neoliberais, que faz passar por correcto, até de um ponto de vista moral, o que, na verdade, contraria o princípio da igualdade de oportunidades. E o facto de a proporção de eleitores do litoral para o interior ser da ordem dos 10 para 1, grosso modo, não deve fazer economizar boas razões em troca de cedências eleitoralistas, quase sempre formadas em maus sentimentos.

Quanto à consistente implicação governamental numa agenda verde, há uma perspectiva de conjunto que, sendo contornada, acaba por dar a impressão de que se faz batota. Um carro eléctrico só pode ser melhor do que um carro a gasolina se a energia com que se carrega as baterias não tiver origem em combustíveis fósseis, mas em fontes renováveis. Portanto, não bastam os incentivos. É preciso investimento em produção de energia limpa. E mesmo assim não é líquido que a escolha pelo motor eléctrico seja mais verde enquanto depender de baterias que funcionam com “petróleo branco”. O branco aqui não é sinónimo de mais limpo.

Esta nova promessa de rendimento é potencialmente tão devastadora quanto tem sido o petróleo negro. Lítio e petróleo são igualmente extractivistas e pouco verdes. Um Governo que se entusiasma com a miragem de muito rendimento extraindo lítio, depois de ter desistido de extrair petróleo, é inconsistente, para não dizer batoteiro.

Mais ainda quando tudo aponta para que a breve trecho as baterias possam vir a ser produzidas a preços muito mais democráticos com sódio que se aproveita da água do mar — sem extractivismo. A própria perspectiva de que, sabendo isto, se corre contra o tempo para aproveitar a janela de oportunidade mostra a leviandade, para não dizer pior, com que se encara uma mudança de paradigma.

É verdade que boa parte das concessões à exploração que têm sido referidas publicamente, com enérgica intermediação da Secretaria de Estado da Energia, são no interior do país. Responsáveis políticos e empreendedores do sector têm dito que, avançando, representariam empregos, fixação de populações, desenvolvimento. Mas será mesmo?

Há muitos alertas a fazer, que devem ser listados: contaminação de águas por substâncias radioactivas e metais pesados no processo de lavagem do mineral; contaminação atmosférica por emissão de poeiras inaláveis; poluição sonora massiva (trepidação causada por explosões) perto de povoações; destruição da paisagem com a sua flora e fauna autóctones; destruição de património arqueológico; perda de valor de património dos residentes e emigrantes que investiram as suas poupanças nas localidades onde nasceram; perda de valor da economia do turismo; produção de riqueza que não fica nas localidades atingidas; escassa criação de emprego e oportunidades de qualificação para as populações locais; redução de disponibilidade de água potável na região, e sabemos como a água potável é dos recursos mais importantes agora e no futuro.

Em suma, o resultado da exploração de lítio é um punhado de riscos seríssimos e a desolação de uma cratera à porta de casa, como referia Maria do Carmo Mendes, activista incansável pela defesa de uma Serra da Argemela livre da exploração de lítio.

Na edição deste ano do Festival de Berlim, o cineasta austríaco Nikolaus Geyrhalter exibiu “Earth”, um documentário sobre a extracção mineira à escala global. Logo no início, o documentário legenda uma paisagem desolada com um número à altura do que é o Antropocénico: a cada dia que passa, 156 milhões de toneladas de rocha e solo são removidas por iniciativa humana, o que nos transforma no maior factor de impacto geológico à superfície da Terra.

Ao longo do filme, são mostradas algumas enormes minas e registados testemunhos, desde logo de mineiros. “o meu trabalho é mover montanhas”, diz um mineiro do vale de San Fernando, na California. E um outro, expondo o seu ponto de vista cru como uma rocha: “Quando chegamos lá, deixa de ser natureza. É trabalho. É um projecto.” As outras minas do documentário são o complexo de Brenner entre a Itália e a Áustria, a mina de Gyöngyös na Hungria, as minas de Ríotinto na Andaluzia, Wolfenbüttel na Alemanha e, por fim, as de Fort McKay, no Canadá, onde é dada voz ao protesto das populações indígenas contra a exploração mineira.

A mãe natureza há-de retaliar. E estas são só minas do Hemisfério Norte. No Sul, serão piores decerto. Por cá, o que não se pode levar a bem é que se fintem as boas causas que se apregoam.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.