Onde quer que ele vá, não há ninguém que escape a um abraço, um beijinho ou uma selfie. Onde quer que ele vá, estão sempre todas as equipas de reportagem de todas as televisões a filmarem-no a agraciar os transeuntes com abraços, beijos e respectiva prova fotográfica. Onde quer que ele vá, a sobreposição da demonstração pública de proximidade com quem quer que seja que o procure e a necessidade de ter a comunicação social a difundir essa demonstração põe a nu o carácter artificial da presidência de Marcelo Rebelo de Sousa e do “marcelismo”.

A coisa atingiu o seu ponto mais grotesco com o telefonema de ontem a Cristina Ferreira, convenientemente em directo para que a esperada vasta audiência da senhora o ouvisse a propagandear a sua simpatia. E atingiu o seu ponto mais imoral com os incêndios de 2017, quando Marcelo, não precisando de ter todas as câmaras de televisão a si enquanto consolava as vítimas, não as dispensou, dando a ideia de que a sua preocupação era mais ser visto a abraçar aquelas pessoas do que realmente dar-lhes qualquer apoio.

Mas um bom exemplo dessa artificialidade, e da acrítica cumplicidade mediática que a torna possível, foi a recente reportagem publicada pelo jornal do Clube de Amigos do ex-primeiro-ministro acusado de corrupção, fraude fiscal e branqueamento de capitais José Sócrates, que resultou de vários dias passados a seguir Marcelo por onde ele se passeasse, e da vontade de Marcelo alimentar o culto da sua personalidade.

Num português deplorável e num tom embevecido, um tal de Ferreira Fernandes descreve Marcelo como um ser sobre-humano, com “uma mente brilhante” (da qual nenhuma demonstração é dada) com “o mundo aos seus pés” e que “imbuí” as “pedras do Palácio de Belém” de “uma aura”, e com “uma vontade de fazer” nascida de metafóricos “prováveis tsunamis”, como se só as selvagens forças da natureza se pudessem comparar ao Presidente.

Ou seja, nada de original: desde o princípio da sua presidência que Marcelo conseguiu convencer toda a gente de que é uma figura extraordinária, e com que toda a cobertura mediática da sua pessoa gire em torno do quão extraordinário é.

Não fugindo à regra, a reportagem de Ferreira Fernandes enumera as dezenas de sítios onde Marcelo foi, as inúmeras entrevistas que deu, o incontável número de pessoas com quem falou. Por outras palavras, repetiu e consolidou o mito da suposta “hiperactividade” de Marcelo, mais uma daquelas coisas que ele diz acerca de si próprio (como o quase não dormir, o ler muitos livros e o ser adepto do Braga) e toda a gente repete como se fosse necessariamente verdade.

Os lugares-comuns que Marcelo dispara acerca da “diáspora”, do carácter dos portugueses ou do papel de Portugal no mundo são tidos como mistérios revelados por um sábio, apesar de serem repetidas sabe Deus há quanto tempo nas mais inanes conversas de café por esse país fora.

Os momentos passados com pessoas sem-abrigo – “mão na mão, mãos nos ombros, dois beijos, selfies, abraçar casais ao par e inclinar-se para falar ao ouvido. Marcelo.” (eu avisei que o português era duvidoso) – são descritos como se Cristo tivesse descido à terra (e quem não se recorda de quando Marcelo disse que não se candidataria à liderança do PSD nem que tal acontecesse, para logo se candidatar sem ninguém ter dado pela Segunda Vinda), imediatamente antes do clímax da peça.

Marcelo convidou Ferreira Fernandes para a sala de audiências de Belém. De repente, e sem que qualquer pergunta lhe tivesse sido feita, dirige-lhe a palavra, e diz, acerca de uma eventual recandidatura: “Depois da operação à hérnia já não sou o mesmo. Foi de urgência, isto é muito solitário. Com os meus netos cá não faria isto. Em 2020 decido”.

Não é difícil perceber o que Marcelo fez aqui. O próprio Ferreira Fernandes, páginas antes e provavelmente sem perceber o alcance do que escreveu, notou como o Presidente diz sempre aquilo que antes “já tinha decidido dizer”: Marcelo queria que esta entrevista passasse uma imagem de um homem incansável na sua entrega aos portugueses mas ao mesmo tempo humilde e sempre a pensar nos netos ao ponto de não saber se concorrerá a um novo mandato, de forma a garantir que quando (e não “se”) vier a concorrer, tenha a popularidade suficiente para ganhar.

Como percebe quem tenha lido esta reportagem, ou simplesmente estado consciente nos últimos anos, o “marcelismo” mais não é do que a redução da acção política à encenação de uma ficção em torno de uma personagem criada e permanentemente interpretada por Marcelo, e à exploração mediática da emoção com o simples propósito de conquistar e manter o favor popular. Infelizmente, essa natureza do “marcelismo” não é apenas um problema de carácter pessoal de Marcelo e razão para o olhar com a maior das desconfianças; é um problema político e motivo para temer pela saúde da nossa democracia.

A redução do discurso político à exibição e exploração de emoções retira-lhe qualquer vestígio de racionalidade, argumentação ou sentido, criando assim o ambiente mais propício para que demagogos e populistas obtenham sucesso: aquele em que o debate político é governado, não por argumentos, mas por “paixões”. Marcelo não se cansa de avisar para os perigos de “aventuras”, mas todos os dias contribui para que elas se tornem possíveis, apenas e só porque não consegue deixar de se guiar exclusivamente pelas suas ambições pessoais.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.