O meu problema não é ficar em casa. O que me preocupa é quando tenho de sair. Felizmente, não preciso de o fazer muitas vezes. E não tenho de usar os transportes públicos. Aí, o tão apregoado e indispensável distanciamento social, medida imprescindível na contenção da propagação da pandemia, torna-se pura miragem, principalmente em hora de ponta.
Ao cruzar-me com autocarros, apercebo-me que o agora obrigatório uso de máscara – sim, afinal tornou-se importante usá-la, deixou de ser uma falsa sensação de segurança – é, por vezes, numa interpretação livre dos utentes, provavelmente posta apenas no acto de entrada, pois vejo que alguns a usam, mais para lhes aconchegar a papada ou abaixo do nariz que o calor é muito e por si só já faz com que o ar escasseie.
O confinamento foi exemplar, mas, sem querer retirar o mérito a quem quer que seja, ficar em casa era mais fácil do que voltar à rua. É verdade que a coisa correu bem. A curva, planalto ou falésia manteve-se domesticada, que é como quem diz com um baixo declive. Assustado com o que se passava em Itália e em Espanha, o pessoal aceitou resguardar-se. Houve até quem falasse em milagre, o milagre deste nobre povo. Tendência para o misticismo ou pouca fé no espírito cumpridor da lusa gente?
Já na saída, os divinos santos não ajudaram muito. Como era expectável, o número de novos casos disparou; mas foi sobretudo na região de Lisboa e Vale do Tejo que soou o alarme. Famílias numerosas em coabitação sem grandes condições e transportes públicos apinhados eram factores que pareciam gerar o consenso para uma explicação do que estava a acontecer; em última análise, a inexistência do tal distanciamento.
A partir de 4 de Maio, os transportes passaram para 2/3 da lotação máxima e assim evitavam-se os aglomerados. Lá dentro talvez, mas, nas paragens, nas estações, as pessoas amontoavam-se e tinham de escolher entre manter o emprego ou desafiar o vírus.
Ah! Havia outra alternativa: aumentar o número de autocarros, de comboios… ou, então, fazer um estudo para confirmar se era mesmo assim. E, surpresa, a responsabilidade não era dos transportes! Confesso que procurei com empenho saber a cargo de quem tinha ficado esta investigação, como foi feito o controlo de variáveis, enfim, qual a metodologia que permitiu chegar a uma tão tranquilizadora conclusão.
Provavelmente falha minha, não encontrei nada. Mas foi certamente um estudo robusto, devidamente fundamentado, pois o próprio Presidente da República aceitou ser arauto da notícia. A 8 de Julho afirmou: “A coabitação é o factor mais importante em termos de explicação causal dos surtos surgidos. Logo seguida da convivência social que tem vindo a ganhar importância. Foi apresentado um estudo que parece demonstrar que não há ligação entre o transporte ferroviário e o surto pandémico. É um dado novo que não era conhecido, mas que foi estudado de forma quantificada”.
Mas eis que me surgiu uma dúvida: por que razão a proximidade na convivência social é factor de risco e nos transportes não?
Ainda procurava respostas quando o ministro das Infraestruturas e Habitação, a 17 de Julho, em entrevista ao Dinheiro Vivo e TSF, anunciava a provável suspensão da imposição da lotação máxima nos transportes. E para justificar a eventual decisão do Governo, o ministro apresentou o exemplo da linha de Sintra, onde em horas de ponta é impossível controlar ou impor os limites em vigor. O risco gere-se por critérios de proximidade, não por decisões políticas quando se quer legitimar a (in)capacidade de superar constrangimentos. O facto de na linha de Sintra a ocupação máxima ser imposta pela lei física da impenetrabilidade resulta de poucos comboios para tanta gente.
O distanciamento social não pode ser exigido em determinadas situações e depreciado noutras, como se o comportamento do vírus se antropomorfizasse: frequenta eventos sociais, está arredado de manifestações e não anda em transportes públicos. Desenganem-se, ele está em todas. Sejamos honestos!
A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.