Revi o mítico debate de Soares com Cunhal e conclui o mesmo de sempre: ninguém ganhara. Era impossível ganhar aquele debate. Os dois titãs tinham verdades próprias, com coerência interna, que não comunicavam entre si. O que Soares tinha ganho em 1975 era o país. O país concordava com ele e, ali, ouvia-se a si mesmo e achava ter razão. Soares tinha essa invulgar capacidade de ser um gigante que se deixa apropriar, projectando-nos nele, na sua visão, e mobilizando energias. O seu magnetismo atraiu as multidões e definiu o país e os termos da liberdade e da reconciliação, num tempo em que seria fácil a retaliação sobre uns e outros.
Mas a sua obra não se esgota no PREC. Em quase tudo o que é genético no regime – na vitalidade democrática de urnas e de ruas; na consagração do pluripartidarismo; no foco no futuro sem alimentar rancores e ajustes; na integração do europeísmo e da vocação atlântica; na criação de serviços públicos para a base social da democracia – habita o espírito de Soares. Ele não foi o artífice destas realizações, feitas a muitas mãos. Mas foi intérprete único dos anseios populares, dando-lhes forma e direcção. A combatividade e a influência permitiram consolidar um regime que não é só político, mas é também económico e social. Sem surpresa, à direita, há quem queira muito desmantelá-lo.
É claro que todos os grandes homens de acção têm contradições. A estreita articulação entre poder e negócios, característica nacional apesar dos regimes, manteve-se intacta na república que ele criou. E eu não subscreveria várias das suas opções. Mas não consigo naturalizar a dureza com que, à esquerda, se trata quem nos é próximo mas se recusa a ser nosso sósia. Uma certa esquerda nunca lhe perdoou a derrota. E a direita, depois de legitimada, queria que ele se sentasse no lugar dos senadores – emudecido.
Soares sempre viveu bem com a polémica e não seria menos do que o autor do seu próprio caminho. O que deve um homem livre fazer senão seguir as suas próprias convicções? Com quem estão, afinal, zangados os derrotados dessas lutas? Ele cometeu a audácia de confiar no seu juízo e avançar sem pedir permissão – e o país avançou com ele, quase sempre.
Para mim, é uma referência do que é ser cidadão e recordo episódios marcantes. Para um jovem dos anos 90, o mundo não se dividia entre sovietes e burgueses. A leste tudo caíra e esses povos queriam a mesma Europa onde ele nos fizera entrar. O meu primeiro Soares é o da cerimónia de adesão, que recordo apesar da idade pelo entusiasmo que a modernidade do projecto europeu me causava.
O cavaquismo tornara-se arrogante, como o poder em Portugal tende a ser. Mas Soares, o presidente, quebrou a visão hierática do político. Saiu à rua e deu voz à divergência em desafio à narrativa triunfante de Cavaco. Em fase de socialização política, o Bochechas alertou-me para a diferença entre o respeito e o respeitinho. O escrutínio da imprensa e a pressão popular cresceram com um Soares que não anatematizava a dissensão – e o verniz social-democrata estalou sob as suas próprias bastonadas.
O meu terceiro Soares desafiou o poder a partir do activismo, opondo-se a Blair e mobilizando a opinião pública contra Barroso e a guerra do Iraque. Eu era estudante, estive nos debates e fiquei impressionado pelo empenhamento cívico que dispensava cargos e a independência face à sua família política.
O respeito pelo desassombro fez-me apoiar a candidatura quando ele se anunciou como barragem a Cavaco, a pedido do PS. Avançar para a presidência era quixotesco e um erro de cálculo, mas era também venerável. A sua derrota eleitoral interrompe a longa parceria com os eleitores.
Mas era claro que Soares lutaria pelas suas ideias até ao último fôlego. E ele foi emprestar o seu prestígio à defesa do estado social nos encontros da Aula Magna. O legado que deixa não são só as realizações, que geram discordâncias, mas também o exemplo de uma inconformada energia cidadã. É isso que hoje quero celebrar. Obrigado, Soares.
O autor escreve segundo a antiga ortografia.