É com algum sentimento de tristeza que tenho de reconhecer que o motor da meritocracia gripou. Nos dias que correm, um sentimento de predestinação, aliado a desenvolvimentos fiscais e tecnológicos, tornaram a meritocracia um mito perigoso para a classe média.

Ao contrário das elites nobiliárquicas, que sabiam ter tido a sorte de ter nascido na família certa e isso lhes dar um sentimento de decência e compaixão para com os que tiveram menos sorte, as novas elites meritocráticas atribuem o seu sucesso unicamente às suas capacidades e ao seu esforço. Julgam-se predestinadas a altos voos. Como que dotadas de capacidades extraordinárias que, contudo, na maior parte dos casos, ninguém lhes reconheceu ao longo das duas primeiras décadas das suas vidas. Estas elites ignoram que a sorte também teve uma palavra a dizer nas suas vidas e que as bafejou de forma especial.

A elite que hoje domina a medicina, a consultoria, os negócios, o direito, a política, é composta pelos filhos das primeiras elites meritocráticas de há três ou quatro décadas atrás. Contudo, a geração actual não reconhece o papel da sorte, ignora que os ascendentes familiares lhes proporcionaram a linguagem ‘certa’ e os contactos perfeitos para o êxito.

Naturalmente, o esforço e a abnegação têm o seu papel, mas a sorte (de um produto, de uma empresa, de um chefe ou padrinho profissional, de ascendentes familiares certos) não é despicienda.

Esta elite, que se julga predestinada, não tem a humildade de reconhecer a sorte que teve e considera os outros como menos capazes. Não fizeram o suficiente, ou não se esforçaram o quanto deviam, entre outras considerações similares. São, por isso, menos predispostas a partilhar os seus ganhos com os demais, a serem solidárias com quem teve menos sorte, mas não necessariamente menos esforço. No seu entendimento, os ‘outros’ merecem ser ‘restruturados’ porque são onerosos demais, esses ‘outros’…

Acresce que os impostos sobre o rendimento do trabalho e as contribuições para a Segurança Social tornaram o trabalho o factor mais caro num processo produtivo. Logo, os estímulos induzem a desenvolvimentos tecnológicos que visam poupar nos custos com o trabalho. A robotização e a digitalização são formas privilegiadas de eliminar os postos de trabalho dos medianamente qualificados, rumo a empresas apenas com uma elite gestora e algoritmos.

Infelizmente, a chacina da classe média segue o seu curso, ainda que seja cada vez mais evidente que precisamos de uma nova ética no mundo empresarial e de um sistema fiscal que não discrimine as pessoas. Mais do que eliminar a classe média, essencial para a estabilidade do regime democrático, necessitamos de inovação que não vise substituir as pessoas por máquinas, mas que torne os trabalhadores mais produtivos.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.