A pergunta que importa fazer no rescaldo das eleições no Brasil e no estado de Hesse, na Alemanha, é se aprendemos alguma coisa com os resultados. Iremos parar para reflectir com humildade, ou continuaremos a criticar o povo? Teremos capacidade para identificar as falhas do sistema que tivemos até agora, ou iremos continuar a procurar fora as causas que estão enraizadas no sistema?

Curiosamente, ou não, o facto de não estarmos mais perto de ditaduras em diferentes países hoje, depende muito mais da vontade e bom senso dos novos eleitos contra o establishment do que dos arautos desse mesmo establishment.

As democracias de modelo ocidental têm o crédito histórico de terem sido o grande palco de afirmação dos direitos fundamentais, de serem espaços consolidados de liberdade, de se regerem pelo primado da lei, de promoverem a cidadania e a inclusão, de construirem um estado social e de bem-estar. Esta é uma obra de sociais-democratas, democratas-cristãos e conservadores. Há todos os bons motivos para ter orgulho no que foi feito, e mais motivos ainda para pensar o presente de modo a que não se ponha em causa todo este edificado político, social e económico.

O tempo corroi e tende a corromper todos os sistemas, a sociedade precisa de novidade e de evolução. Não é novidade que, com tudo dado por adquirido, os protagonistas políticos se acomodaram e centraram muitíssimo mais na gestão do poder e das suas alternâncias cíclicas, do que na interpretação da evolução social. As ideologias democráticas foram sendo preteridas por opções de gestão, e uma vaga de pragmatismo cinzento deixou o espaço dos princípios ser ocupado pelos extremos.

A primeira e mais perigosa disseminação extremista não chega com Trump, Orbán ou Bolsonaro. A Europa e os Estados Unidos abriram espaço, por demissão ideológica das suas forças centrais, a uma contaminação do sistema por uma agenda opressiva da esquerda radical de inspiração jacobina. À boleia dos direitos fundamentais, ficámos reféns de uma nova engenharia social destrutivista, traduzida na ditadura do politicamente correcto.

A política de cedência a estas agendas fracturantes empurra para a saturação os sectores moderados, que compõem a maioria do tecido social. A ideologia de género está a produzir mais revolta do que aceitação, muito compreensivelmente. As políticas de morte, como a eutanásia e o aborto, provocam mais insegurança e degradação do que satisfação ou tranquilidade. O ataque à família, à maternidade, destroi referenciais essenciais, não os substituindo por qualquer tipo de valor sustentável.

O centro moderado, que construiu estas democracias, não soube encontrar respostas alternativas a este avanço da extrema-esquerda e dos discípulos avençados do tenebroso Soros, tendo ficado remetido a uma gestão orçamental do poder, acreditando na alternância automática e inquestionada por via do estatuto de fundador do sistema.

Os cidadãos europeus que votam Le Pen, Orbán, Salvini ou nos FPO e AfD não são todos nazis, estúpidos, racistas ou extremistas. Os eleitores que deram a presidência a Trump não são todos trogloditas, apesar de terem aparentemente optado por um. Os brasileiros que esmagadoramente escolheram Bolsonaro, não subscrevem a maioria dos disparates que gritou ao longo da campanha. Ainda assim, estes eleitores, onde encontramos rigorosamente todo o tipo gente, quiseram dizer basta ao estado de coisas actual.

A Europa tecnocrata e permissiva começa a estar insuportável para os europeus; os americanos não toleraram que o Partido Democrata lhes tentasse impingir Hillary, o rosto da podridão do sistema e do patrocínio de Soros; os brasileiros esgotaram a paciência para viver num dos países mais corruptos, mais inseguros e mais desiguais do mundo, só para satisfação dos artistas engajados e da inteligência de esquerda internacional. Ter uma abordagem paternalista, de superioridade moral ou intelectual, em relação a estes eleitores é não ter compreendido nada, é voltar ostensivamente as costas à realidade.

A guerra está instalada e aberta entre os extremos. Se o politicamente correcto, a influência nos media, o espírito de grupo, a contaminação das instituições, proibiu durante anos que se falasse abertamente do avanço da extrema-esquerda e do jacobinismo, e da sua tentativa de domínio do espaço social através da sua desconstrução, hoje não há como ignorar este facto, nem a resposta que os cidadão vão dando à volta do mundo.

A grande fatia da responsabilidade pela tomada do espaço público pelos extremos está mais no demérito dos moderados do que na tenacidade e agilidade dos extremos, apesar de não negligenciáveis.

Quando a social-democracia, a democracia-cristã e o conservadorismo têm vergonha de ser aquilo que são, fazendo tudo por se confundir, tornam-se apenas portos de abrigo de um corpo de funcionários políticos divorciado dos cidadãos. Quando os partidos tradicionais desprezam os seus valores fundacionais, têm pânico à ideologia e ambicionam ao oportunismo do “catch all”, estão a alienar o seu papel de guardiões do sistema, a fragilizar a democracia pela falta de propostas diferenciadoras, sólidas e confiáveis.

Mais do que um concurso de popularidade entre lideranças, o centro tem de recuperar a diferenciação ideológica na sua composição, de recriar a diversidade de propostas coerentes com cada quadro de geografia política, de reconstruir a credibilidade que o dito pragmatismo, traduzido sempre em oportunismo, destruiu. Só com muita força e carácter ao centro, poderemos fazer recuar a actual força dos extremos.

Enquanto insistirmos na demissão que abriu caminho ao domínio cultural e social da extrema-esquerda e do jacobinismo, é normal, e até saudável, que a sociedade grite o seu cansaço e esgotamento com a radicalidade de direita. São gritos de alerta. Se não os levamos a sério, é um problema de todos. Se as forças democráticas tradicionais tiverem coragem de procurar, e encontrar, respostas para os problemas de hoje, assumidamente dentro das diferentes matrizes que construíram a democracia, os votos não faltarão.

O autor escreve de acordo coma  antiga ortografia.