1. Este título talvez deva algo ao filme “Os deuses devem estar loucos”, embora fazendo rodar a bobina, o filme em si seja de natureza essencialmente cómica e o que aqui se aflora em nada pende para esse lado.

O filme referido começa no deserto do Kalahari, tem como um dos focos uma simples garrafa de Coca-Cola, lançada de uma avioneta inadvertidamente e que cai junto de um local onde brincava um grupo de crianças bosquímanas. A garrafa bojuda com as letras da marca bem salientes, vermelhas, desperta muita curiosidade nas crianças e também nos adultos – a garrafa símbolo da moderna civilização –, por ser um produto bem diferente daqueles que estavam acostumados a ver. Divertem-se, primeiro, viram-na e reviram-na, imaginam usos até algo estranhos para a garrafa.

Mas, passado algum tempo, este simples objecto começa a ser causa de sérias disputas de posse no seio do grupo dos membros da comunidade. O filme prossegue com muita hilaridade e comicidade.

Talvez uma das ideias mais interessantes a reter do filme aponte para as dificuldades que todos temos e sentimos em encarar e resolver situações novas ou diferentes, seja no campo da política, da economia ou do social.

2. Regressando ao tema, será que o mundo está mesmo louco? O meu ponto de vista não vai nessa linha. O mundo está em processo de efervescência em vários andamentos. Quase diria, são poucas as excepções onde nada “ferve”. Mesmo naqueles sítios em que tudo aparenta acalmia.

Com um simples lançar de olhos pelas muitas e variadas zonas/países em movimentações de protesto, luta, guerras, deparamo-nos com revoltas por vezes anárquicas e de objectivos pouco claros, contraditórios e com diferenças bem evidentes entre si.

Mas, grosso modo, predominam ou razões políticas ou económicas ou sociais, onde a corrupção, a exploração, a fuga aos impostos, a má gestão política e empresarial estão sempre acopladas e atingindo um elevado grau de desagrado e de revolta das populações, sendo tudo aquilo a causa máxima das terríveis desigualdades vigentes na distribuição da riqueza.

Olhando para Hong Kong ou para a Catalunha, claramente são motivos de ordem política que movem aquelas contestações, aquelas lutas de rua. E, embora bastantes razões as separem, há uma que as une, a repressão da liberdade. E uma outra bem importante também, a falta de diálogo entre as partes.

Se olharmos para o Chile, Líbano, Iraque, Argélia já são problemas sobretudo económicos, com a corrupção a campear, que estão na origem destes tumultos ou das demissões de dirigentes políticos.

Mas o mundo está em grande mudança, reviravolta direi, mais visível ou menos visível. São os países da América latina – quase todos. É África. É o mundo muçulmano. É a própria Europa, de uma forma ou de outra, onde não nos podemos esquecer da contestação recente dos coletes amarelos e da Catalunha. São os próprios Estados Unidos. Tudo mexe.

3. E se entrarmos um pouco a fundo nesta situação vamos chegar ao ponto em que tudo entronca: a distribuição muito desigual do valor da riqueza criada.

E se nos detivermos ainda nas grandes transformações tecnológicas que não se esgotam na designação de transição digital que teremos de enfrentar no curto, médio e longo prazo e na necessidade de nos prepararmos para as enfrentar, ficamos com a angústia e o desespero de, em muitos casos, estarmos a perder o combóio, ficando com a sensação de que as desigualdades tendem a aprofundar-se.

Esta sensação e angústia, que perpassa todas as sociedades com mais ou menos força, assumem em Portugal uma situação específica, devido aos baixos rendimentos médios auferidos.

Por outro lado, as elites associam e justificam esta distribuição muito desigual da riqueza à questão da produtividade. Com ela se tenta explicar tudo não explicando nada. Já se pensou, por exemplo, onde estão as causas da baixa produtividade no nosso país? Seria bom que as confederações patronais, as associações empresariais se debruçassem seriamente sobre esta questão pois, em minha opinião, é nesses meios que se situam.

E não resisto para terminar este artigo de opinião a fazer duas citações relativas à produtividade, extraídas de “O Valor de Tudo” de Mariana Mazzucato, professora no University College, em Londres, onde também fundou e dirige o Institute for Innovation and Public Purpose.

No prefácio que intitula “Histórias sobre criação da riqueza” escreve o seguinte: “Entre 1975 e 2017, o PIB real dos Estados Unidos – a dimensão da economia ajustada à inflação – triplicou mais ou menos de 5,49 biliões de dólares para 17,29 biliões. Durante esse período a produtividade cresceu cerca de 60%, mas, a partir de 1979, o salário real da grande maioria dos trabalhadores americanos estagnou, ou, inclusive caiu. Por outras palavras, durante cerca de quatro décadas uma elite diminuta captou todos os ganhos de uma economia em expansão. Isso deveu-se ao facto de haver membros da sociedade americana especialmente produtivos?”

A segunda citação prende-se com o Goldman Sachs: “Em 2009, Lloyd Blankfein, presidente-executivo do Goldman Sachs, afirmou: «Os funcionários do Goldman Sachs contam-se entre os mais produtivos do Mundo». Mas apenas um ano antes, o Goldman Sachs tivera um contributo importante para a pior crise financeira e económica desde a década de 1930. Os contribuintes norte-americanos tiveram de pagar 125 mil milhões de dólares para o resgatarem.

À luz do terrível desempenho do banco de investimento apenas um ano antes, uma declaração deste jaez feita pelo presidente-executivo foi extraordinária. O banco despediu três mil funcionários entre Novembro de 2007 e Dezembro de 2009 e os lucros caíram a pique”.

Tudo histórias para justificar quem cria riqueza quando, na realidade, só extrai valor. Aliás, na semana passada, aquando da discussão do Programa do Governo, ouviu-se Rui Rio dizer algo de muito parecido – a produtividade portuguesa dificilmente segurará a subida do salário mínimo para 750 euros que o Governo do PS propõe que aconteça até 2023. Para ele, 700 euros já era muito bom.

Mais uma história para a distribuição da riqueza criada a distribuir em benefício de uma elite, como sempre.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.