Este milénio tem sido o do fim da linearidade. Se dúvidas havia, deixaram de fazer sentido. Aprendemos desde pequenos não a torcer pepinos, mas a raciocinar linearmente. Um exemplo são as regras de três simples dos tempos da escola,

pouco depois da tabuada. E mentalmente fazemos contas, sempre a pensar proporcionalmente. Já Aristóteles escrevia na “Poética”, em 335 a.C., que uma história deve ter um princípio, um meio e um fim, uma sequência linear.

O mundo é não-linear
Mas nem as coisas mais simples são lineares. Aqueles que tiveram formação em economia lembram-se do problema dos estudantes de Direito: “o tipo fala da curva da procura, da curva da oferta. Vai para o quadro e só desenha retas.” É mais fácil fazer as contas e explicar os raciocínios se for linear, mesmo se procura e oferta nunca foram retas. Um erro, porém.

Lange, Puntoni e Larrick lembram-nos na HBR do exemplo da empresa que tem dois tipos de carros, no mesmo número e a fazerem todos os mesmos 10 mil quilómetros por ano: SUV que fazem quatro quilómetros com um litro de combustível e sedãs que fazem oito quilómetros por litro. A empresa vai renovar metade da frota, e pode escolher entre: H1. Substituir os SUV por sedãs, e fazer 8 quilómetros em vez de quatro com cada litro de combustível; H2. Substituir os sedãs por carros económicos, e fazer 24 quilómetros em vez de oito com cada litro.
Qual escolher? A resposta parece certa, com H2 faço três vezes mais quilómetros, enquanto com H1 só faço duas vezes mais. Porém, vejamos qual a poupança por carro: em H1, cada SUV gastava 2.500 litros de combustível, enquanto cada sedã gasta apenas 1.250 litros; poupo 1250 litros por carro. Em H2, cada sedã gastava 1.250 litros, enquanto cada económico gasta 416,7; poupo apenas 833,3 litros. A melhor opção é H1, porque a relação entre consumo total e quilómetro/litro não é linear.
Também ilustrativo é que, na aparência, subida e descida são iguais, ou seja, uma subida e uma descida seguidas do PIB de, por exemplo, 5%, repõem-no no nível de partida. Devia ser, não devia? Ou imagine que lhe davam a possibilidade de fazer o seguinte jogo: apostar mil euros e atirar ao ar repetidamente uma moeda perfeita; sempre que sair coroa ganha 60% do dinheiro que tiver, enquanto se sair cara só perde 50%. Aceita jogar?

Está tentado a dizer que sim, tem a mesma probabilidade de ganhar que de perder e, se ganhar, ganha mais 10%. Pare e faça as contas. Suponha que em dois lances seguidos perde primeiro e ganha depois, e isto cinco vezes. Ao fim dos dez lances tem menos de 328 euros, e não pense que é por começar a perder. Se começar a ganhar, alternando com perder, acaba com os mesmos 328 euros. Tal como se ganhar cinco vezes seguidas e depois perder cinco vezes, ou qualquer outra combinação – a multiplicação é comutativa.

Voltando ao início, se o PIB crescer num ano 5% e cair no seguinte 5%, ao fim destes dois anos será menor que era no princípio. O mesmo acontece se cair 5% primeiro e crescer 5% depois. A fazer isto dez anos, acabamos com o PIB 1,25% abaixo do que era quando começámos. Isto é linear, para si?

As narrativas lineares já não atraem as massas. Já não queremos ser ricos, queremos ser ricos amanhã, para quê esperar? Quando a taxa de juro é baixa, somos bombardeados por SMS dos nossos bancos com pacotes de crédito barato, preparadinhos para a compra de carro, móveis, férias – a taxa de juro baixa também reduz a rentabilidade dos bancos, portanto ou se aumenta a quantidade (do crédito) ou o preço (as comissões). Depois, são os conselhos sobre como aplicar o nosso dinheiro. Ao seu consultor financeiro faça sempre a mesma pergunta: se ele também comprou e quanto.

No dia em que houver uma lei a obrigá-lo, não haverá consultor. É que quem conhece uma forma certa de fazer dinheiro, não a conta a ninguém.

O passado são velharias, não antiguidades
Aprendemos economia com o multiplicador keynesiano. Depois temos todos os tipos de multiplicadores, sempre lineares. Projetamos efeitos como sendo lineares, mas não são. Construímos modelos e testamos políticas com eles, para evitar erros. Mas a Crítica de Lucas (Robert, não George) diz-nos que as equações que estimamos resultam de comportamentos de otimização dos agentes: o consumidor maximiza a utilidade, o produtor maximiza o lucro (não se sabe bem o que o Estado maximiza). A função consumo depende da política fiscal; ora, se a taxa de imposto muda, não é só o parâmetro que muda, é também a equação. A que estimámos já não serve.

Tranquilizamo-nos dizendo que pequenas variações geram pequeníssimos erros, negligenciáveis. Mas neste passado recente não houve pequenas variações – retomando o exemplo, há poucos anos tivemos um aumento de impostos “colossal”. Tentar adivinhar o que irá resultar na base de qualquer modelo macroeconómico é como jogar no Totoloto. A crise da Grécia foi gerida como foi, às apalpadelas (walrasianas), porque dada a escala ninguém sabia o que podia acontecer e o menos arriscado era socorrer, escaldados que estávamos com o episódio da Lehman Brothers. Prever, hoje, não é uma ciência, é uma arte. Como disse Bohr, prever é difícil, sobretudo se for o futuro. Para alguns, tem uma dimensão teológica: vamos em frente, seja o que Deus quiser.

Este milénio vamos com crise atrás de crise, todas grandes. Não há linearidade que resista. Primeiro foi a das dot-com, cujo final se deu em 2001. Em pouco mais de cinco anos o índice Nasdaq passou de menos de mil a mais de cinco mil; a economia americana aquecia, e no espaço de um ano a Reserva Federal norte-americana (Fed) aumentou a taxa de juro seis vezes (eram outros tempos), para arrefecer. Então, o Nasdaq caiu 2500 pontos. Uma bolha não tem nada de linear.

Em 2007 faliu a Lehman Brothers, naquilo que podemos chamar “morte por subprime”, e tivemos a crise financeira internacional, que se estendeu a 2008 e 2009. Atirou-se muito dinheiro ao problema – a Alemanha, a França, a Itália, a Holanda e a Áustria mais de um milhão de milhões de euros – em ajudas ao sistema financeiro, enquanto na zona euro o PIB caía 1,5% no quarto trimestre de 2008 (num trimestre, na União o PIB caiu 4,3% em 2009).

Em 2010, foi a vez da crise da dívida soberana, espoletada quando a Grécia não se conseguiu financiar nos mercados internacionais. Foi a época dos pacotes de salvamento (bailouts) por que passaram vários países. A Irlanda teve nesse ano um défice orçamental de 32% do PIB, a socorrer o sistema financeiro. Quando tudo isto começou a ficar para trás, veio a Covid e a uma política monetária expansionista juntou-se uma política fiscal igualmente expansionista, para evitar uma recessão séria.

A Teoria Económica tradicional não foi construída a pensar nestes episódios. Assenta no estudo de equilíbrios, e como se passa de um equilíbrio a outro. Mas temos vindo a viver em permanente desequilíbrio. O que se aprende na faculdade tem limitada utilidade para tratar disto. E as grandes variações tornam as nossas aproximações lineares inúteis ou muito arriscadas.

Os gnomos estão em Frankfurt, não Zurique
Na sequência destas crises, a dívida pública era em 2020, em percentagem do PIB, 206% na Grécia, 156% na Itália, 135% em Portugal, 120% em Espanha, 115% na França e em Chipre, 113% na Bélgica; mesmo na Alemanha era 69%. Quando foi assinado o Tratado de Maastricht foi escrito como limite 60%. Entretanto, as taxas de juro estão aos níveis mais baixos de que há memória, fruto da política monetária que tem sido seguida, na Europa como no resto do mundo.

Nos EUA foi injetado mais dinheiro na economia com o socorro aos bancos e seguradoras e com o Quantitative easing I (2009-2010) e II (2010-2011) que desde a independência até aí, incluindo as compras da Louisiana e do Alasca, o Plano Marshall, o programa espacial, a crise das Savings & Loans, as Guerras da Coreia e do Vietname. A coisa continuou com a Administração Trump.

O Quantitative easing (QE) foi uma espécie de medida de último recurso. Era preciso fazer algo, não se sabia o quê, os instrumentos correntes estavam esgotados. Avançou-se então para as medidas não convencionais, que não faziam parte da panóplia normal da política monetária e não estavam testadas, porque não tinham fundamento teórico sólido nem se sabia quais seriam exatamente os seus efeitos.
Citando Ben Bernanke, o presidente da Fed, em 2012: “Well, the problem with QE is it works in practice, but it doesn’t work in theory.” Não foi fazer de feiticeiro, foi ser aprendiz de feiticeiro por falta de alternativa. Num futuro não muito distante iremos conhecer as reais consequências do que andámos a fazer. Continuando numa linha bíblica, Lucas 23:34: “Perdoa-lhes, Pai, que não sabem o que fazem.”
Atualmente discute-se começar o unwinding e secar a liquidez a mais. Não é para menos. Às quintas-feiras a Fed publica a sua Balance Sheet, o relatório H.4.1, basicamente a sua situação financeira consolidada. Fica-se a conhecer os ativos detidos pela Reserva Federal, sobretudo títulos do Tesouro americano, normalmente adquiridos em open market operations.

Com o QE, alargou-se o leque de ativos detidos, que podem ser até títulos de empresas – a secção 13(3) do Federal Reserve Act de 1913 permite à FED deter dívida não-governamental –, mas sobretudo aumentou muito a quantidade: passou de menos de um milhão de milhões de dólares para 8,7 milhões de milhões, entre os quais dois milhões de milhões de MBS, as famigeradas Mortgage-backed Securities, créditos hipotecários empacotados em ativos financeiros. Ou seja, a Fed foi às compras e multiplicou o seu balanço por dez em 15 anos – era 0,87 milhões de milhões em agosto de 2007.

Aumenta o crédito concedido e aumenta a massa monetária. Mais moeda a caçar os mesmos bens, o que faz subir os preços. Hoje, a taxa de inflação nos EUA está em 6,2%, o valor mais alto desde 1990, com toda esta liquidez a pairar. Nada do que pode acontecer é linear, secar esta liquidez tem que ser feito devagar, não há no passado experiência de algo com esta dimensão. E o mercado de títulos bate recorde atrás de recorde, portanto, o momento é bom. Mas Fed e BCE resistem ainda e sempre ao invasor, neste caso, a subir as taxas de juro.

A tese é que a subida da inflação é transitória, provocada por um efeito de nível (com a contração da atividade provocada pela Covid os preços estavam artificialmente baixos) e estrangulamentos na produção, com as cadeias de fornecimento a serem repostas. Oxalá, senão a inflação poderá tomar proporções épicas – voltaríamos aos anos 70, a época das self-fulfilling prophecies.

Claro que um regresso da Covid (até ómega ainda faltam umas letras) permite ganhar tempo, mas é saltar da frigideira para cair no fogo. Precisamos de um Murray Gell-Mann; Newton disse “se fui capaz de ver longe, é porque estava rodeado de gigantes”. Três séculos depois, Gell-Mann corrige-o: “se fui capaz de ver longe, é porque estava rodeado de anões.”

O principal problema que teremos pela frente é que as taxas de juro estão aos níveis mais baixos de dezenas ou centenas de anos e os Estados endividaram-se para evitar cair na recessão. Se for preciso subir significativamente a taxa de juro para combater a inflação, a pressão sobre as finanças públicas vai ser brutal: com 100% do PIB de dívida pública, um aumento de um ponto da taxa de juro é, passado pouco tempo, mais 1% do PIB de défice orçamental todos os anos; um par de pontos de aumento e ficamos em risco de recessão. Portanto, só há um caminho: as taxas de juro têm que continuar baixas, embora não tão baixas; a subida tem que ser lenta e gradual para ser acomodável, e tem que começar cedo para não ter que ser precipitada e grande.

Os bancos centrais caíram na sua própria armadilha, paz à nossa alma.