O ser humano adapta-se a tudo. Sempre me admirei com os relatos da vida em Beirute durante o auge da guerra civil e com a forma como os seus habitantes continuavam a viver as suas vidas, mesmo sob os intensos tiroteios ou bombardeamentos entre as diferentes fações. Agarravam-se a uma ilusão de sanidade e à esperança, enquanto enterravam bem fundo o trauma que viviam no quotidiano.
Se nos tivessem dito em 2019 que esse seria o último ano da velha normalidade, quem iria acreditar? A pandemia acelerou e expôs a precariedade do mundo do trabalho, assim como a fragilidade dos laços de globalização que construímos. Agora, a invasão da Ucrânia pela Rússia, assente numa profunda motivação ideológica, que atenta contra tudo o que a Europa tentou construir no pós-guerra, expõe a nossa vulnerabilidade à dependência energética desse mesmo país.
Contudo, não estamos inocentes. As nossas lideranças ignoraram os sinais óbvios em relação à Rússia. A Chechénia e a Geórgia, a anexação de territórios ucranianos, o estreitamento de relações com países outrora satélites da União Soviética e a sua transformação em democracias iliberais ou autocracias, as interferências nas eleições americanas, a censura, a complexa máquina de propaganda e desinformação que foi lançada através da Internet (e não só) e que apoiou partidos e fações de extrema-direita ou populistas em muitos países. Os exemplos sucedem-se.
Como as tentativas de envenenamento e a prisão de opositores. As constantes ameaças em relação ao fornecimento de gás e petróleo. A transformação da sociedade russa num povo Z, imerso em guerras Z, em parte alienada e impotente para fazer frente ao poder massivo acumulado por Putin e seus aliados.
A passividade e a cegueira perante todos estes eventos vai custar-nos décadas, num mundo novamente fraturado, numa nova guerra fria que abre frentes bélicas no terreno. É o início de mais um capítulo sombrio na nossa História, que afeta tudo e todos, como peças de dominó. As eleições francesas vão para uma segunda volta incerta a 24 de abril, entre o liberalismo de Macron e a extrema-direita de Le Pen. Pode não ser em 2022, mas, a avaliar pelos diversos tipos de voto antissistema, será uma questão de tempo até Marine Le Pen alcançar o poder e estilhaçar a configuração política europeia.
Com a intensificação da guerra no Leste da Ucrânia, começa a esboçar-se um cenário de dois blocos de poder. Na China e em vários outros países asiáticos e do Médio Oriente, Putin é visto como uma vítima das políticas de agressão do Ocidente e do imperialismo americano, e como o único capaz de oferecer uma verdadeira alternativa que permite a ascensão de uma nova ordem mundial. Estaremos perante um bloco sino-russo, com imensos países satélite sob a influência de Putin, por oposição ao velho Ocidente, a braços com inúmeras vulnerabilidades?
O que podemos fazer para sair desta encruzilhada? Fomos colocados na defensiva e, por agora, há que resistir e não vacilar no terreno. Recordemos as palavras de Primo Levi sobre os horrores da Segunda Guerra Mundial: “Porque o que aconteceu pode acontecer de novo. As consciências podem mais uma vez ser seduzidas e obscurecidas, até as nossas próprias consciências.” Tinha razão.