Um número significativo de analistas tem-se debruçado sobre as consequências geopolíticas da Covid-19. Na maioria dos casos apresentam a epidemia como uma oportunidade única de a China colocar em causa a liderança global dos EUA. De facto, existe essa possibilidade, como existem outras. É tão-somente mais uma possibilidade, longe de ser a mais evidente. Com a informação disponível não arriscamos um prognóstico.
É ainda difícil apurar a dimensão das consequências sociais e políticas da Covid-19, para além de sabermos que irá provocar uma recessão económica. E quanto maior ela for, maior será a instabilidade social e política. Já existem indícios disso no sul de Itália. Há outros desenvolvimentos interessantes que se podem já identificar. A globalização não voltará a ser o que era. A Covid-19 veio alertar o mundo ocidental para a sua dependência da China, quando descobriu que dependia de Pequim para fabricar medicamentos.
Foi preciso a Covid-19 para os dirigentes ocidentais perceberem que os interesses estratégicos dos estados se têm de sobrepor à lógica meramente economicista do capitalismo. A pátria do capital é a distribuição dos dividendos pelos acionistas. Merkel sugere agora a possibilidade de nacionalizações.
Sabemos que não é possível reverter totalmente a globalização, dada a profunda interdependência económica entretanto criada. Mas sabemos que algo de profundo acontecerá. Até os neoliberais já falam da necessidade de regulação.
A onda de protecionismo iniciada por Trump vai acentuar-se. Os EUA procurarão recuperar muita da capacidade produtiva perdida. O mesmo se passará com os países europeus, que seguirão as pisadas dos EUA. A globalização será seguramente uma das vítimas da pandemia, e, por acréscimo, também a economia chinesa, grande beneficiária da globalização, e fortemente dependente das exportações (cerca de 20% do PIB), em particular das exportações para os EUA.
A economia chinesa não ficará incólume a uma recessão económica mundial, em particular no mundo ocidental, cujos contornos ainda desconhecemos, assim como à onda de protecionismo que paira no horizonte. O seu projeto “Rota da Seda” sofrerá um rude golpe. Num ambiente de retração e de protecionismo, a China ficará numa situação difícil. Terá de se virar para o mercado interno, onde tem muito espaço para progredir, mas fará seguramente um compasso de espera no seu crescimento.
É prematuro falar em vencedores da crise originada pela Covid-19. Não são os kits, as máscaras e os ventiladores que a China disponibilizou que irão alterar as preferências estratégicas dos Estados europeus. Testaremos isso brevemente quando a União Europeia tiver de votar a extensão das sanções económicas à Rússia.
A China tem todas as condições para ultrapassar os EUA económica e militarmente. Mas isso vai demorar tempo e não será uma consequência direta da pandemia causada pela Covid-19.
Em matéria de hierarquia na ordem mundial, a pandemia não produzirá um efeito tectónico semelhante ao da II Guerra Mundial, quando os EUA destronaram o Reino Unido, ou ao da implosão da União Soviética, que transformou uma ordem bipolar em unipolar, e conduziu os EUA à supremacia mundial. A hipótese de a China ser a grande beneficiada da crise é apelativa, mas assenta em premissas com pés de barro.