O facto de a resposta ser prematura não deve invalidar um exercício prospetivo com base na informação disponível, em particular aquela recolhida através das declarações de Biden e dos seus conselheiros de política externa. A derrota de Trump foi certamente uma bênção para os americanos. Livraram-se de uma figura reacionária, grotesca e bizarra.

Fica por saber se o que foi bom para os americanos será bom para o mundo. Há no discurso de Biden aspetos positivos a aplaudir. O anúncio da reversão das políticas de Trump relativamente ao Irão, às alterações climáticas e à Organização Mundial da Saúde. Contudo, essas intenções são rapidamente obscurecidas pelo que tem vindo a anunciar relativamente às relações dos EUA com a Rússia e a China.

As relações com a Rússia vão manter-se tensas. Biden considerou a Rússia “a maior ameaça à América”. Prometeu agravar as sanções. “Devemos impor à Rússia os custos reais pelas violações das normas internacionais”. Não se inibiu de encorajar uma operação de mudança de regime em Moscovo.

“Estamos ao lado da sociedade civil russa, que se opõe corajosamente ao sistema cleptocrata e autoritário do Presidente Vladimir Putin”. “Essa ameaça impõe que estejamos mobilizados no plano militar”. “Para conter a agressão russa, devemos manter as capacidades militares da Aliança a um nível elevado e aumentar a sua capacidade para fazer face a ameaças não tradicionais, como a desinformação e a pirataria cibernética”. Com base neste tipo de argumentação, a NATO foi-se aproximando das fronteiras da Rússia, esquecendo-se de que a Rússia não poderá fazer cedências na sua buffer zone.

Muito provavelmente a tensão com a China não diminuirá. Para Biden será Beijing quem determinará se somos concorrentes ou se terminaremos numa competição mais séria que envolva o uso da força”. Biden anunciou que vai organizar uma “Cimeira da democracia” para fazer face à ameaça chinesa, tendo como bandeira os valores da América, fingindo não saber que sabemos que o comportamento das grandes potências na arena internacional é determinado pela geoestratégia. Narrativas leva-as o vento, com a primeira rajada.

Biden propõe-nos um regresso ao passado, ao statu quo ante Trump, em que a América pretendia estar em todo o lugar e resolver todos os problemas do mundo, como se a correlação de forças mundial fosse a mesma do fim da Guerra Fria, e o mundo se tivesse mantido imutável. Qual cruzado de sabre em riste na luta pela expansão da democracia liberal. Sabemos o resultado dessas ideias. A equipa de que Biden se rodeou tem nesta matéria um passado muito pouco recomendável.

Biden e os seus assessores parecem ter aprendido pouco com a história. Insistem no overstretch estratégico, não percebem que essa atuação de “mais olhos do que barriga” contribuiu para criar as condições objetivas e subjetivas que levaram à vitória de Trump e à polarização social da sociedade americana, que Trump se encarregou de agravar.

Não restam muitas dúvidas de que Biden não irá alterar a postura confrontacional dos EUA com a China e a Rússia. Poderão existir alterações de natureza tática, mas não de estratégia. Seria sensato reduzir a tensão existente. Mas é melhor prepararmo-nos para um período difícil, porque não vai ser fácil substituir a confrontação pela cooperação e diálogo.